O restaurador
“O que é natural e fica bem é cada um usar o cabelo com que nasceu”. Passava em pescadinha, naquela velha televisão. Um anúncio, também ele com alguma idade, sobre um restaurador capilar que, nas palavras do locutor, usado diariamente dava ao cabelo a sua cor primitiva. A humidade daquela mal iluminada cave não permitia que o odor pestilento se desvanecesse. Agrilhoados às paredes, quase lado a lado, múltiplos corpos em putrefação testemunhavam a publicidade enganosa daquele elixir capilar. Qual cor primitiva, se nem o cabelo lhes sustinha nas cabeças. Dezenas de embalagens vazias jaziam pelo chão imundo. O passar dos anos havia-as deteriorado e, numa combinação de todo improvável, transformado num ácido altamente corrosivo. Ele bem tentou provar que a promessa se mantinha válida. Mas a morte do produto haveria de levar a tantas outras. Fechou a pesada porta metálica com estrondo e saiu à rua. A luz do dia feriu-lhe a vista. Inspirou fundo e, frustrado, avançou pelo passeio deserto.
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2024)