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no preâmbulo da noite fria
no lusco fusco que faz ponte para o escuro cerrado
ali te vi, parada, perigosamente abeirada
da falésia escarpada
olhar fixo nas ondas desfiguradas
do embate versus a muralha rochosa
e tu, ali, chorosa
a um passo da fatalidade
do voo no breu que, entretanto, se perfez
chegou a tua vez?
não cerres as pálpebras
não te chegues adiante
resiste ao mandante
ao mar que te chama, ao convite da noite
deixaste a mesa posta, a comida ao lume
lá em baixo um gume
afiado, aguçado
e tu sem apetite, senão o de ver aquele abisal destino em ti encarnado
tão bela e impávida ao gélido vento
inebriada pela dor do momento
quebrado o coração
tudo o resto no desfecho
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2023)
Se pensares cair
da forma que te apraz
não te desiludas pelo caminho
nada temas ou receies
ou sequer voltes atrás.
Do céu cairá uma voz
que te acompanhará
e por guia te será o destino
nesse desamparo em que te verás
de forma e conteúdo
que, contudo, será confuso
e te apoiará, para lá de quem fores ou em quem te tornares.
Essa será a tua paixão
a tua queda pelo que queiras
a tu dependência em quantas formas e maneiras
na hora em que respirares de alívio
no instante em que tocares o chão.
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2023)
Se algo me encanta?
Poemar, as palavras arrumar na desarrumação de um poema por instinto.
O sentir que daí vem, o apego à força dessa construção, num empreendimento
hercúleo, dantesco, ao amor e ao que por ele se sofre, quantas vezes tenebroso, que nunca da razão.
Que não existe razão para tal, neste instinto animal de berrar a plenos pulmões, em convulsões da alma, neste doer que se verte em palavras sofridas e cansadas, que se arrastam ao ouvido e lhe soam tão bem.
Tónicos e suplementos de vitalidade, sem idade ou propósito que não o de embelezar os dias, como música musicada das entranhas da solidão.
Encanta-me a poesia. Como a noite fria em que numa rajada doentia se ergue a voz e tudo alumia na via deste destino. Entre tanto desatino, à força de se querer ser mais que tudo. A via láctea, a Cassiopeia, a viagem de uma epopeia de sangue, alma e que calma, a que se lê e ouve, neste poema. Doce e amargo, num trago embelezado, sem espinhas, todo coração.
Esta paixão escorre-me das mãos ao papel e nele se entrega aos prazeres de uma noite de verão.
Abençoadas as palavras, assim sentidas, assim sofridas, em lágrimas derramadas.
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2023)
fecha-se tudo
olhos cerrados, cerrado este coração
verto lágrimas
verto-me em cinzas
peço-te perdão
quero-te comigo
numa viagem à nossa imensidão
para lá de qualquer regresso
apenas a tua na minha mão
de tudo aquilo que te peço
o toque, a pele, o olhar
ver-te sorrir, querer-te amar
quedo-me a cada suspiro
por ti morro neste altar
esta estrada já me conhece
sigo nela e por ti a percorro
sem mapa ou orientação
na berma colho memórias
do que fomos então
fecha-se tudo
pouco a pouco
peço-te perdão
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2023)
Nesta casa não encaixo
tudo nela me é estranho
as divisões desconhecem-me
nas paredes o estuque estalou
e desde então, a confusão
em casa de ferreiro, espeto-me no chão
por cada passo adiante, sinto-me dois mais distante
subo aos alguidares, é o mais alto que consigo
não tenho ilusões, vertigens não é comigo
tropeço na esfregona, vira-se o balde
tudo por terra e eu ao comprido
no soalho manchado, acumula-se sujidade
pó, cotão, bolor e uma extrema humidade
ando baralhado
de divisão em divisão
já não tenho idade
caduquei como cidadão
não me querem no telhado
tentei a cave, também não
ando desarrumado
não te encontro em nenhum lado
virei tudo do avesso
eu avesso à mudança
mas, mudaste tu?
Partiste e deixaste-me esta casa?
Que mesquinha se vinga
por não te ter sabido habitar?
Sentei-me à mesa, que era a nossa
também ela coxa de coração
desgastada, agastada com a situação
a comida está estragada
arruinada está a refeição
que me resta agora
na estranheza deste lar
que de doce tem pouco
e tudo faz para me desagradar
vou-me embora, corro porta fora
ver-me-ei noutro lugar
talvez sim, talvez não
se me for permitido lá morar
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2023)
o que eu procurei pela palavra “vida”
as voltas que por ela dei
os cantos e cantinhos por onde rebusquei
onde fui, já nem sei
o que por ela palmilhei
numa busca que me deu medo
medo de não mais a ouvir, ler
de não mais a ver acontecer
eu juro que a procurei, esta palavra “vida”
em becos e vielas, ruas e travessas
se a encontrei, já esqueci
há tanto tempo a vivi
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2023)
mais prego menos prego
nas tábuas deste caixão
de nada adianta ao adiantado da situação
não me reduz a pena
tão pouco suaviza a dor
desta cárcere eterna
que me espera abaixo do chão
esmorecidas vozes
de um coro descrente
entoam os salmos
desta morte eminente
cabisbaixos, braços ao dependuro
cegos, surdos e mudos
num leito de corpos em convulsão
desnudos de fé
peganhentos, lustrosos
suadas lagostas em orgias desmesuradas
jazem na terra, abaixo do chão
seis palmos, cessam os salmos.
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2023)
Hoje estou ainda mais perto.
Cumpri com mais uma jornada de tantos dias e vontades e sonhos e arrelias,
que também as há.
Hoje sinto-me mais além no tempo, percorridos tantos caminhos, reais, mentais,
alguns atalhos, que também os há.
Hoje sei que continuo um percurso, a que não vislumbro o horizonte, mas avanço,
com mais, com menos, com o que me for sendo possível dar e, no processo,
em troca receber.
Hoje, sou mais eu.
Sinto-me mais em sintonia com algo que não sei expressar, mas que me soma mais identidade.
Hoje, com mais idade.
Amanhã, depois e depois, sem pressa, mas a cada dia mais alinhado com um destino que me constrói,
alicerça e desvenda ao mundo.
Assim me vejo e sinto.
Hoje.
De que me serve dar-lhe início
se já lhe sei o fim?
Começa no zero, acaba no nada.
Ou antes ainda, para se precipitar num depois inexistente.
O que antes havia, depois haverá
sobrevivendo a cada novo começo e ao abismo em que cada um se precipitará.
Esta é a contabilidade, a realidade
insignificante e tão, mas tão, vazia
que não vale um sopro, não vale nada
onde começa e onde acaba.
Agora vês-me, agora já não.
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2023)