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TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

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Dia Mundial do Livro

por migalhas, em 23.04.24

Ler, mas com cabeça.

Miguel Santos Teixeira

 

O dia. Mundial do Livro.

O Pensamento. Ler todas as obras literárias alguma vez publicadas, nesse único dia.

O plano. Insano, no mínimo.

Reunir os biliões de textos que, século após século, haviam sido selecionados para se partilharem com os leitores e, de uma penada, consumi-los todos. Uma penada de 24 horas, mas ainda assim uma brevidade assombrosa, atendendo às pretensões do projecto.

E as pausas? Para alimentação, necessidade básicas, higiene. Rentabilizar cada uma, era a palavra de ordem. Quem nunca leu na retrete, à mesa entre garfadas ou mesmo enquanto lava os dentes?

Os obstáculos maiores, as armadilhas, as impossibilidades, tudo isso é obra maior da nossa cabeça. Ela que é perita em imponderáveis que dificultem o bem-sucedido, em problemas ou dificuldades que impeçam os propósitos a que nos propomos. Razão mais do que suficiente para a eliminar da equação. Pô-la num cepo e ordenar ao carrasco:

- Ó tu, do capuz preto enfiado até à medula!

- Are you talkin’ to me?

- Vês aqui mais alguém enfiado num capuz preto ridículo como esse?

- Sei lá, pouco consigo ver à volta com isto enfiado cabeça abaixo.

Pois, que mais poderias ser senão carrasco – sussurrou.

- Sim, tens razão, de facto a tarefa parece de um grau de dificuldade elevado.

Para os teus parâmetros, então, nem se questiona. Voltou a sussurrar. Só davas mesmo para carrasco.

- Mas adiante. Tens um tempinho ou estás muito ocupado?

- Quem eu?

- Epá, começas a deixar-me em dúvida se deva recorrer a ti mesmo para o que estou quase a pedir-te.

- Não entendi.

- Também pouco interessa para o efeito.

Para além de que não me surpreende – novo sussurro.

- Bom, sem delongas e directo ao assunto: cortas-me a cabeça ou tenho de o pedir a um amigo secreto?

- Se quiseres que tudo fique em segredo, comigo não contes. Que eu conto cada cabeça que corto e até tenho um bloquinho onde assento tudo. Para além de que também conto tudo aos meus parceiros de copos na taberna, ao fim de cada dia.

- Certo. A ideia é só deixares cair o machado sobre este pescocinho macio e tenrinho e deixar que essa lâmina afiada cumpra o seu propósito. Achas que consegues? Tens um tempinho para isso?

- Tipo agora? É que estou aqui numa troca de mensagens que ainda pode demorar.

- Daí ter-te perguntado se tinhas um tempinho para isso.

- Ter até tenho. Acho que consigo arranjar aqui uma vaga por volta das três da tarde. Dava-te jeito a essa hora?

Já estou por tudo – algo sussurrado.

- Negócio fechado às três!

- Às três é quando abro o negócio, não entendeste. Queres que te explique de novo?

- Não, não, deixa estar.

Com este, um gajo perde a cabeça mesmo antes de ele a cortar, chiça!

O tempo passou e a hora agendada aproximava-se.

O gajo da cabeça, ainda com ela sobre os ombros, regressou ao convívio do carrasco e foi dar com ele, sem surpresa, a trocar mensagens. Que certas profissões exigem muito do competente profissional. O cuco anunciava as três da tarde e nesse instante o carrasco trocou o ecrã pela vida real. Ao fundo, o seu próximo cliente.

- Foi você que marcou para as três?

- Sim, sou eu mesmo.

- E acha que está preparado para o que lhe vou fazer?

- Bom, preparado a pessoa nunca estará inteiramente. Afinal, não é todos os dias que agendamos a subtracção de uma parte tão importante do nosso corpo.

- Pois, eu só pergunto que é para depois não virem dizer que afinal se arrependeram, e isso.

- Pois, seria algo complicado de fazer após a sua intervenção.

- Você é que sabe. Então vamos?

E lá foram eles, lado a lado, rumo a um espaço ermo e massacrado pelo sol abrasador. No meio daquele nada, um cepo. Ou dois, se contarmos agora com a presença do carrasco. O terceiro elemento, não se incluindo propriamente nessa classe, não deixou de repousar a sua cabeça naquele cepo amigo, como que aguardando por alguma consolação. Uma insolação, talvez. Mas seria por pouco tempo. Que o profissional do machado depressa o segurou e elevando-o no ar, que rasgou de rompão, num ápice deixou-o abater sobre aquele pescoço indefeso. Sobre aquela ponte que unira cabeça ao tronco. E nem o diabo havia acabado de esfregar o olho e já o pobre decapitado saldava a sua dívida, fazendo-o, se bem que por todo manchado de sangue, por MBWay. Operação concluída!

Um cumprimento breve e agora poderia ingressar em qualquer espectáculo sem pagar. Pois, como todos sabem, quem não tem cabeça não paga nada.

Satisfeito com a decisão, embora não se pudesse adivinhá-lo no seu rosto, o feliz decapitado tinha agora pela frente um desafio um pouco mais abrangente que qualquer um outro que a sua ex-cabeça lhe pudesse impor. Não pensara no assunto então e agora tal tarefa tornava-se ainda mais problemática. Como raio ia ele ler tanto livro num único dia se, entretanto e com tantas voltas e reviravoltas, já estava no dia seguinte ao dia mundial do livro? Sentou-se, colocou o espaço que fora da cabeça entre as mãos e chorou. Quer dizer, se ainda tivesse olhos. Suspirou fundo, se ainda tivesse vias nasais, e largou um sonoro desagrado, caso ainda o conseguisse por via da boca que agora lhe fora igualmente subtraída.

Perdera a sua oportunidade. O plano não correra como o previsto. E com tudo isso, tinha agora ainda a árdua tarefa de adiar todas as suas leituras sine die. É o que dá dar ouvidos a quem menos interessa. Neste caso, a um carrasco.

Moral da história: Leiam. Tudo o que podem e enquanto podem. Não vá um dia ficarem com cataratas.

 

FIM

nasci faz tempo

por migalhas, em 24.02.24

hoje faço anos

nasci faz tempo e nem dei por ele, entretanto

aqui cheguei, qual naufrago

para a missão que me foi atribuída

sem roupa ou noção, logo chorei

como que a prever

 

dei os primeiros passos e fui andando

e nem dei por aquilo que andei

era tudo mais fácil, era um mundo adiante

eram sonhos e ambições

era uma vez, como nas histórias

 

e hoje faz anos que aqui cheguei

o naufrago envelheceu

a ilha como que encolheu

e com ela o tempo

e a distância que falta andar

 

hoje já sei andar, mas tropeço de vez em quando

já sei falar, mas evito-o

já me canso e sinto o avanço

disfarço este aperto e dou por mim a recuar

a recordar

de novo a chorar

será por que nasci faz tempo?

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira (2024)

terra nenhuma

por migalhas, em 09.11.23

terranenhuma.jpg

d'amor!

por migalhas, em 12.07.23

“De quantos encontros se faz uma vida De quantos

Duplo de mim

por migalhas, em 10.07.23

Há um duplo de mim

Igual, tal e qual

Que espreita a cada esquina

Me olha e copia

Mas que em pouco ou nada se associa

Ou de mim sequer se aproxima

 

Esse duplo

Que dizem existir

É esforçado, lá isso é

Assemelha-se, aqui e ali

Mas fica-se por aí

Qual cópia de mim!

Nem nada que se pareça

Que o tire da cabeça!

 

Uma mera contrafacção

Um artigo em segunda mão

A fazer-se passar pelo original

Mas tristemente igual

Nem cuspido, muito menos escarrado

Tão longe está

Mais longe fica

Quando comparado

Ele, que nem ares dá

Pobre coitado

 

Que como eu, só mesmo eu

Irrepreensível peça única

sem volta a dar

Ou forma de copiar

Louvada joia

Entre os seus pares

 

© Copyright Migalhas (100NEXUS_2023)

Dormente

por migalhas, em 06.07.23

Em revoadas

Sem tempo definido

Ao longe a memória

Em fagulhas de um ardor doente

Como farpas de um amor quente

Que não se olha

Mas que se sente

E assim o corpo, dormente

 

E depois, quando já nada nem ninguém

No coração de uma qualquer noite

Os rostos sucedem-se

Tocam os sinos a rebate

E no cerne dessa fúria

Surgem então à tona

Esses ses tão espessos

Breu que alumia

Esta espécie de agonia

Que sem tempo definido

E em revoadas de uma sarcástica dor

Não deixam dúvidas

Mas o corpo assim, e também a mente

dormente

 

© Copyright Migalhas (2014)

É fogo

por migalhas, em 04.07.23

Alimenta o fogo

Alimenta-o bem

Dá-lhe o que ele gosta e vê-o crescer

Ele que tudo consome

Seja carne

Da tua, da minha

Ou carne seja

Que nunca é demais, pois nunca sobeja

Servida à gula do seu ser

No cerne do que ele é

Besta irada em dança de labaredas

Num apelo de sofreguidão incansável

Ele insaciável

Ele monstro infernal que no calor da emoção se consome

E a vida obscurece num negrume que transparece

Desse seu modo violento de quem chama ardentemente

De quem se sabe demente

E não recua jamais

Que o seu fito é para a frente

Obcecado, doente

Até se fazer distante

Passado, história

Um rasto de cinzas ao vento

Extinto o momento

 

© Copyright Migalhas (2016)

Rio abaixo

por migalhas, em 30.06.23

Casca de noz

Numa dessas, rio abaixo

Sigo eu, ao sabor de quantas correntes o formam

O entroncam e lhe conferem vitalidade

Ele, tão mais volumoso

Caudal decidido, impetuoso

E eu, tão à deriva

Sem norte, nem sorte

A depender-lhe da vontade

De me ver adiante ou a seus pés sufocado

Que nem ser assustado

Que nem humano castigado

A si subjugado

 

© Copyright Migalhas (2016)

ao longe

por migalhas, em 20.06.23

ruínas habitam-me o peito

destroços esquecidos do que um dia foi pedra de toque a cada nova aurora

hoje pedra fria que apenas chora

 

naufraguei, a certa altura da vida

não sei quando, nem porquê

apenas que não saro esta ferida

que profunda se sente, pior se vê

 

ao longe olho o mar e invejo o seu respirar

mais longe ainda procuro um ponto onde me ausentar

não que sossegue ou apazigue este sofrer em mim encarnado

mas deixa entreaberta a porta que me há-de ser a fuga

quem sabe a cura

para esta loucura

que se contorce, geme e queixa

e a reboque da sua dor leva a minha

e sem consolo a deixa

 

© Copyright Migalhas (100NEXUS_2013)