E por que o atravessamos, nada como entendê-lo pela escrita de Ali Smith. Leitura obrigatória e de todo oportuna, numa época pós-Brexit em que a autora se questiona sobre o nosso tempo a partir da amizade de duas pessoas com 70 anos de diferença. Um romance que comove pela simplicidade e exercício poético acerca de como ler um mundo onde somos muito frágeis.
Fica ainda a referência à presença deste romance entre os 100 mais importantes do século XXI, na óptica do The Guardian (ver post anterior).
O Outono empalidece. Tudo à sua volta se redobra em esforços inúteis e é o cinzento quem mais molesta. Uma pausa, uma sensação de que as ruas passam por nós e não nós por elas. E as pessoas? Por quem passam as pessoas? Por outras pessoas, embora não as olhem nos olhos. E os dias a observarem. A observarem tudo atentamente e cada novo passo de quem passa pelos dias e nem a estes os olha nos olhos. Dias em que o céu se rasga e nele laivos de um tempo que parece estagnado. Como as águas paradas de um esgoto a céu aberto, rasgado, ferido de morte por um golpe que lhe foi profundo em demasia. E dele a soltarem-se mil almas, a erguerem-se quantas vidas dizimadas e os dias a observarem, atentamente a observarem, sem nada acrescentarem senão o tempo que derramam como lama de uma enchente que tudo submerge à sua passagem. E lá fora, enquanto anoitece, o Outono empalidece. E do alto desse Outono, que esmorece, indigente, folhas cansadas da uma vida incerta lançam-se na incerteza de uma outra, quais gárgulas fantásticas, empedernidas figuras que nos beirais se reúnem em bandos de um esplendor assustador para se abeirarem do dia e dele fazerem eterna noite. E tudo a empalidecer, mesmo aos olhos de quem não olha nada, nem nos olhos. Em redor de um tempo que só espera pelo Inverno seguinte para se intrometer em quantos corações, com a ligeireza do gume afiado que nem se sente, depois dormente e por fim, já perto da morte, tudo escurece, quantos dias, todos os dias, daí para a frente.
Trazem com eles o peso de acontecimentos recentes, ainda quentes.
Memórias com dias de vida, sonhos que ganharam vida, a própria vida que se ganhou nos dias recentes.
Urgentes, pois que o ciclo assim o exige.
Surgem perversos na sua calma.
Destoam dos que deixam para trás, felizes, onde tudo foi possível.
Vestem novos tons e neles encontro um desdém involuntário, um sarcasmo que não é maldoso, mas que é presente.
O Verão morreu.
Segue-se o Outono.
É assim, sempre foi e será.
A sequência repete-se, a tristeza que nos amolece.
Olhamos e recordamos já saudosos, ausentes em parte certa, a que repousa logo ali, num passado à distância de um sorriso que se desfaz, naturalmente. Os dias mirram, os dias escurecem, a alma canta, desafinada.
Olha-se o céu num desespero angustiante, acompanha-se o percurso sinuoso daquela gaivota, na sua pose esvoaçante, sem compromissos, senão com o ar que cruza, errante.
Tudo se arrasta, se alonga, o tempo encurtado parece doente.
Ou será a nossa mente?
Que agora sente o deserto que tem pela frente?
São dias de Outono, ao mês nono.
Oferendas de um tempo renascido, um punhado de horas nunca repetido.
Neles se esconde vida, neles encontro a minha e quando os recordar, após a sua partida, será com a mesma saudade de todos os outros.
De cada um que ficou, que foi presente e por instantes em si me reteve.
Contemplo estes, dias de Outono, da mesma forma que contemplo todos, dias após os dias.