O estrondo foi evidente. Os olhares seguiram-no. Houve sobressaltos, os típicos sustos. Crianças pequenas correram assustadas na direção dos pais. Boquiabertas, algumas pessoas retraíram-se. Ninguém se mostrou indiferente ao alvoroço provocado. Na loja, a empregada prontamente pegou no frágil manequim e ergueu-o do chão. Colocou-o de volta à posição de sempre, a vertical. Com ele, erguera-se igualmente a dignidade momentaneamente perdida. Recompostas, as pessoas seguiram os seus destinos. Aquele incidente era já passado. A vida apelava à normalidade, ao regresso urgente desta e a esta. O manequim ali continuaria a sua missão. Vestido, despido, mas sempre em pé. De preferência.
Confronto-me com aquele ser na cruz e partilho da sua dor. Também eu fui brindado em vida com uma pesada cruz que arrastei a cada dia da minha existência e que tem sido presságio da minha morte anunciada. Também eu fui flagelado e milhentas chagas se me abriram em rios de sangue que verti em direcção ao imenso mar onde me vejo submergir a cada espaço de tempo. Não deveria haver permissão para tamanho sofrimento. À flor da pele ou profundo como o abismo em que nos deixamos cair, atraídos pela tentação, pela vida de ficção com que julgamos iludir a realidade. E esta não é a minha realidade. Fechado entre quatro paredes de um quarto nu, de tudo despojado. Agradeço a dádiva, a esperança em mim depositada, a ajuda que me foi dada sem nada exigir em troca senão a minha redenção, a minha abnegação à vida de pecado a que me submeti e que tem impregnado os meus dias. Lamento desapontá-los guardiões da fé, da crença num poder do além, mas essa promessa jamais a poderia cumprir. Pois não é esta a minha realidade. Sou animal selvagem e não admito cativeiro algum. Ninguém nem nada me priva da liberdade que me percorre as veias, que me permite respirar. Nem que isso signifique a morte. Pois também ela é libertação. A suprema libertação.
Excerto do projecto "Crónicas de Serathor", de Miguel Santos Teixeira.
O Pensamento. Ler todas as obras literárias alguma vez publicadas, nesse único dia.
O plano. Insano, no mínimo.
Reunir os biliões de textos que, século após século, haviam sido selecionados para se partilharem com os leitores e, de uma penada, consumi-los todos. Uma penada de 24 horas, mas ainda assim uma brevidade assombrosa, atendendo às pretensões do projecto.
E as pausas? Para alimentação, necessidade básicas, higiene. Rentabilizar cada uma, era a palavra de ordem. Quem nunca leu na retrete, à mesa entre garfadas ou mesmo enquanto lava os dentes?
Os obstáculos maiores, as armadilhas, as impossibilidades, tudo isso é obra maior da nossa cabeça. Ela que é perita em imponderáveis que dificultem o bem-sucedido, em problemas ou dificuldades que impeçam os propósitos a que nos propomos. Razão mais do que suficiente para a eliminar da equação. Pô-la num cepo e ordenar ao carrasco:
- Ó tu, do capuz preto enfiado até à medula!
- Are you talkin’ to me?
- Vês aqui mais alguém enfiado num capuz preto ridículo como esse?
- Sei lá, pouco consigo ver à volta com isto enfiado cabeça abaixo.
Pois, que mais poderias ser senão carrasco – sussurrou.
- Sim, tens razão, de facto a tarefa parece de um grau de dificuldade elevado.
Para os teus parâmetros, então, nem se questiona. Voltou a sussurrar. Só davas mesmo para carrasco.
- Mas adiante. Tens um tempinho ou estás muito ocupado?
- Quem eu?
- Epá, começas a deixar-me em dúvida se deva recorrer a ti mesmo para o que estou quase a pedir-te.
- Não entendi.
- Também pouco interessa para o efeito.
Para além de que não me surpreende – novo sussurro.
- Bom, sem delongas e directo ao assunto: cortas-me a cabeça ou tenho de o pedir a um amigo secreto?
- Se quiseres que tudo fique em segredo, comigo não contes. Que eu conto cada cabeça que corto e até tenho um bloquinho onde assento tudo. Para além de que também conto tudo aos meus parceiros de copos na taberna, ao fim de cada dia.
- Certo. A ideia é só deixares cair o machado sobre este pescocinho macio e tenrinho e deixar que essa lâmina afiada cumpra o seu propósito. Achas que consegues? Tens um tempinho para isso?
- Tipo agora? É que estou aqui numa troca de mensagens que ainda pode demorar.
- Daí ter-te perguntado se tinhas um tempinho para isso.
- Ter até tenho. Acho que consigo arranjar aqui uma vaga por volta das três da tarde. Dava-te jeito a essa hora?
Já estou por tudo – algo sussurrado.
- Negócio fechado às três!
- Às três é quando abro o negócio, não entendeste. Queres que te explique de novo?
- Não, não, deixa estar.
Com este, um gajo perde a cabeça mesmo antes de ele a cortar, chiça!
O tempo passou e a hora agendada aproximava-se.
O gajo da cabeça, ainda com ela sobre os ombros, regressou ao convívio do carrasco e foi dar com ele, sem surpresa, a trocar mensagens. Que certas profissões exigem muito do competente profissional. O cuco anunciava as três da tarde e nesse instante o carrasco trocou o ecrã pela vida real. Ao fundo, o seu próximo cliente.
- Foi você que marcou para as três?
- Sim, sou eu mesmo.
- E acha que está preparado para o que lhe vou fazer?
- Bom, preparado a pessoa nunca estará inteiramente. Afinal, não é todos os dias que agendamos a subtracção de uma parte tão importante do nosso corpo.
- Pois, eu só pergunto que é para depois não virem dizer que afinal se arrependeram, e isso.
- Pois, seria algo complicado de fazer após a sua intervenção.
- Você é que sabe. Então vamos?
E lá foram eles, lado a lado, rumo a um espaço ermo e massacrado pelo sol abrasador. No meio daquele nada, um cepo. Ou dois, se contarmos agora com a presença do carrasco. O terceiro elemento, não se incluindo propriamente nessa classe, não deixou de repousar a sua cabeça naquele cepo amigo, como que aguardando por alguma consolação. Uma insolação, talvez. Mas seria por pouco tempo. Que o profissional do machado depressa o segurou e elevando-o no ar, que rasgou de rompão, num ápice deixou-o abater sobre aquele pescoço indefeso. Sobre aquela ponte que unira cabeça ao tronco. E nem o diabo havia acabado de esfregar o olho e já o pobre decapitado saldava a sua dívida, fazendo-o, se bem que por todo manchado de sangue, por MBWay. Operação concluída!
Um cumprimento breve e agora poderia ingressar em qualquer espectáculo sem pagar. Pois, como todos sabem, quem não tem cabeça não paga nada.
Satisfeito com a decisão, embora não se pudesse adivinhá-lo no seu rosto, o feliz decapitado tinha agora pela frente um desafio um pouco mais abrangente que qualquer um outro que a sua ex-cabeça lhe pudesse impor. Não pensara no assunto então e agora tal tarefa tornava-se ainda mais problemática. Como raio ia ele ler tanto livro num único dia se, entretanto e com tantas voltas e reviravoltas, já estava no dia seguinte ao dia mundial do livro? Sentou-se, colocou o espaço que fora da cabeça entre as mãos e chorou. Quer dizer, se ainda tivesse olhos. Suspirou fundo, se ainda tivesse vias nasais, e largou um sonoro desagrado, caso ainda o conseguisse por via da boca que agora lhe fora igualmente subtraída.
Perdera a sua oportunidade. O plano não correra como o previsto. E com tudo isso, tinha agora ainda a árdua tarefa de adiar todas as suas leituras sine die. É o que dá dar ouvidos a quem menos interessa. Neste caso, a um carrasco.
Moral da história: Leiam. Tudo o que podem e enquanto podem. Não vá um dia ficarem com cataratas.
"Os primeiros passos numa área tão sensível e complexa como a poesia só podiam ser frágeis. O olhar, intimista. O registo, o tom, vezes sem conta negros, como os hábitos de quem vive constantemente questionando-se sobre o porquê de assim ser, de assim estar. As palavras, soltas, sem freio ou receio do que possam consigo carregar. Tudo aqui exposto, perante o vosso olhar."
Abril de 2011
Corria o ano de 2011, quando me decidi a editar esta minha primeira aventura pelo mundo da poesia.
Edição de autor, da capa ao miolo, por estas páginas dava a minha entrada naquele que viria a ser um dos meus mundos predilectos para habitar.
Hoje, Dia do Livro Português, lembrei-me de o recordar e de o sugerir, a quem aprecie este género literário e de arte, por que não dizê-lo.
Deixo aqui as indicações para quem o queira adquirir, o que, desde já, agradeço.