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TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

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A queda

por migalhas, em 15.08.24

O estrondo foi evidente. Os olhares seguiram-no. Houve sobressaltos, os típicos sustos. Crianças pequenas correram assustadas na direção dos pais. Boquiabertas, algumas pessoas retraíram-se. Ninguém se mostrou indiferente ao alvoroço provocado. Na loja, a empregada prontamente pegou no frágil manequim e ergueu-o do chão. Colocou-o de volta à posição de sempre, a vertical. Com ele, erguera-se igualmente a dignidade momentaneamente perdida. Recompostas, as pessoas seguiram os seus destinos. Aquele incidente era já passado. A vida apelava à normalidade, ao regresso urgente desta e a esta. O manequim ali continuaria a sua missão. Vestido, despido, mas sempre em pé. De preferência.

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira - Agosto 2024

Dia do Autor Português

por migalhas, em 22.05.24

Confronto-me com aquele ser na cruz e partilho da sua dor. Também eu fui brindado em vida com uma pesada cruz que arrastei a cada dia da minha existência e que tem sido presságio da minha morte anunciada. Também eu fui flagelado e milhentas chagas se me abriram em rios de sangue que verti em direcção ao imenso mar onde me vejo submergir a cada espaço de tempo. Não deveria haver permissão para tamanho sofrimento. À flor da pele ou profundo como o abismo em que nos deixamos cair, atraídos pela tentação, pela vida de ficção com que julgamos iludir a realidade. E esta não é a minha realidade. Fechado entre quatro paredes de um quarto nu, de tudo despojado. Agradeço a dádiva, a esperança em mim depositada, a ajuda que me foi dada sem nada exigir em troca senão a minha redenção, a minha abnegação à vida de pecado a que me submeti e que tem impregnado os meus dias. Lamento desapontá-los guardiões da fé, da crença num poder do além, mas essa promessa jamais a poderia cumprir. Pois não é esta a minha realidade. Sou animal selvagem e não admito cativeiro algum. Ninguém nem nada me priva da liberdade que me percorre as veias, que me permite respirar. Nem que isso signifique a morte. Pois também ela é libertação. A suprema libertação.

 

Excerto do projecto "Crónicas de Serathor", de Miguel Santos Teixeira.

Liberdade

por migalhas, em 25.04.24

Nela ouso pensar

de sorriso no rosto de quem sabe que quer

ou se permite poder.

 

Com ela me quero deitar

nela me quero depositar

por entre juras e promessas

de dias ao sol, noites ao luar.

 

Parida de um cravo foi, espinho de rosa é.

 

Fez a cama, onde me deitei

deu-me a mão, que aceitei

enfeitiçou-me, e eu deixei.

 

Iludido, apaixonado

fez-me sonhar acordado,

quando o tempo todo assim vivi

apenas e só, enganado.

 

Não lhe vi a outra face

o âmago que é o seu

erro meu, meu enterro

que nela quis acreditar

 

Liberdade, Liberdade

que já nada tens para me dar

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira

A revolução

por migalhas, em 24.04.24

De quem vieram as ordens para avançar com a revolução?

Pouco se sabe.

Mas pressões de um insatisfeito grupo de militares, podem ter despoletado o processo.

Queriam a mudança, o corte com a ditadura, mas sem derramamento de sangue.

Para mostrarem ao mundo que era possível cortar sem fazer feridas.

O pai, militar orgulhoso de ter integrado a bem-sucedida operação, mostrou ao filho a metralhadora.

A G3, com o cravo cravado no cano a travar a saída de uma munição que fosse.

O filho, sem perceber o que se passava, mas visivelmente contagiado pelo entusiasmo do pai, pegou no cravo e cheirou-o.

O pai baixou a guarda e agora o cravo já nada podia deter.

Nem mesmo a bala, que, fatalmente, o atingiu pelas costas.

Lá fora, a celebração subia de tom.

Já no chão desta casa, um outro tom, este vermelho sangue, desabrochava.

Inocente, a criança olhou o pai inerte, o soldado tombado.

Era dia de festa.

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira

Dia Mundial do Livro

por migalhas, em 23.04.24

Ler, mas com cabeça.

Miguel Santos Teixeira

 

O dia. Mundial do Livro.

O Pensamento. Ler todas as obras literárias alguma vez publicadas, nesse único dia.

O plano. Insano, no mínimo.

Reunir os biliões de textos que, século após século, haviam sido selecionados para se partilharem com os leitores e, de uma penada, consumi-los todos. Uma penada de 24 horas, mas ainda assim uma brevidade assombrosa, atendendo às pretensões do projecto.

E as pausas? Para alimentação, necessidade básicas, higiene. Rentabilizar cada uma, era a palavra de ordem. Quem nunca leu na retrete, à mesa entre garfadas ou mesmo enquanto lava os dentes?

Os obstáculos maiores, as armadilhas, as impossibilidades, tudo isso é obra maior da nossa cabeça. Ela que é perita em imponderáveis que dificultem o bem-sucedido, em problemas ou dificuldades que impeçam os propósitos a que nos propomos. Razão mais do que suficiente para a eliminar da equação. Pô-la num cepo e ordenar ao carrasco:

- Ó tu, do capuz preto enfiado até à medula!

- Are you talkin’ to me?

- Vês aqui mais alguém enfiado num capuz preto ridículo como esse?

- Sei lá, pouco consigo ver à volta com isto enfiado cabeça abaixo.

Pois, que mais poderias ser senão carrasco – sussurrou.

- Sim, tens razão, de facto a tarefa parece de um grau de dificuldade elevado.

Para os teus parâmetros, então, nem se questiona. Voltou a sussurrar. Só davas mesmo para carrasco.

- Mas adiante. Tens um tempinho ou estás muito ocupado?

- Quem eu?

- Epá, começas a deixar-me em dúvida se deva recorrer a ti mesmo para o que estou quase a pedir-te.

- Não entendi.

- Também pouco interessa para o efeito.

Para além de que não me surpreende – novo sussurro.

- Bom, sem delongas e directo ao assunto: cortas-me a cabeça ou tenho de o pedir a um amigo secreto?

- Se quiseres que tudo fique em segredo, comigo não contes. Que eu conto cada cabeça que corto e até tenho um bloquinho onde assento tudo. Para além de que também conto tudo aos meus parceiros de copos na taberna, ao fim de cada dia.

- Certo. A ideia é só deixares cair o machado sobre este pescocinho macio e tenrinho e deixar que essa lâmina afiada cumpra o seu propósito. Achas que consegues? Tens um tempinho para isso?

- Tipo agora? É que estou aqui numa troca de mensagens que ainda pode demorar.

- Daí ter-te perguntado se tinhas um tempinho para isso.

- Ter até tenho. Acho que consigo arranjar aqui uma vaga por volta das três da tarde. Dava-te jeito a essa hora?

Já estou por tudo – algo sussurrado.

- Negócio fechado às três!

- Às três é quando abro o negócio, não entendeste. Queres que te explique de novo?

- Não, não, deixa estar.

Com este, um gajo perde a cabeça mesmo antes de ele a cortar, chiça!

O tempo passou e a hora agendada aproximava-se.

O gajo da cabeça, ainda com ela sobre os ombros, regressou ao convívio do carrasco e foi dar com ele, sem surpresa, a trocar mensagens. Que certas profissões exigem muito do competente profissional. O cuco anunciava as três da tarde e nesse instante o carrasco trocou o ecrã pela vida real. Ao fundo, o seu próximo cliente.

- Foi você que marcou para as três?

- Sim, sou eu mesmo.

- E acha que está preparado para o que lhe vou fazer?

- Bom, preparado a pessoa nunca estará inteiramente. Afinal, não é todos os dias que agendamos a subtracção de uma parte tão importante do nosso corpo.

- Pois, eu só pergunto que é para depois não virem dizer que afinal se arrependeram, e isso.

- Pois, seria algo complicado de fazer após a sua intervenção.

- Você é que sabe. Então vamos?

E lá foram eles, lado a lado, rumo a um espaço ermo e massacrado pelo sol abrasador. No meio daquele nada, um cepo. Ou dois, se contarmos agora com a presença do carrasco. O terceiro elemento, não se incluindo propriamente nessa classe, não deixou de repousar a sua cabeça naquele cepo amigo, como que aguardando por alguma consolação. Uma insolação, talvez. Mas seria por pouco tempo. Que o profissional do machado depressa o segurou e elevando-o no ar, que rasgou de rompão, num ápice deixou-o abater sobre aquele pescoço indefeso. Sobre aquela ponte que unira cabeça ao tronco. E nem o diabo havia acabado de esfregar o olho e já o pobre decapitado saldava a sua dívida, fazendo-o, se bem que por todo manchado de sangue, por MBWay. Operação concluída!

Um cumprimento breve e agora poderia ingressar em qualquer espectáculo sem pagar. Pois, como todos sabem, quem não tem cabeça não paga nada.

Satisfeito com a decisão, embora não se pudesse adivinhá-lo no seu rosto, o feliz decapitado tinha agora pela frente um desafio um pouco mais abrangente que qualquer um outro que a sua ex-cabeça lhe pudesse impor. Não pensara no assunto então e agora tal tarefa tornava-se ainda mais problemática. Como raio ia ele ler tanto livro num único dia se, entretanto e com tantas voltas e reviravoltas, já estava no dia seguinte ao dia mundial do livro? Sentou-se, colocou o espaço que fora da cabeça entre as mãos e chorou. Quer dizer, se ainda tivesse olhos. Suspirou fundo, se ainda tivesse vias nasais, e largou um sonoro desagrado, caso ainda o conseguisse por via da boca que agora lhe fora igualmente subtraída.

Perdera a sua oportunidade. O plano não correra como o previsto. E com tudo isso, tinha agora ainda a árdua tarefa de adiar todas as suas leituras sine die. É o que dá dar ouvidos a quem menos interessa. Neste caso, a um carrasco.

Moral da história: Leiam. Tudo o que podem e enquanto podem. Não vá um dia ficarem com cataratas.

 

FIM

Dia do Livro Português

por migalhas, em 26.03.24

frágeis passos, negros hábitos - poemário 1

"Os primeiros passos numa área tão sensível e complexa como a poesia só podiam ser frágeis.
O olhar, intimista.
O registo, o tom, vezes sem conta negros, como os hábitos de quem vive constantemente questionando-se sobre o porquê de assim ser, de assim estar.
As palavras, soltas, sem freio ou receio do que possam consigo carregar.
Tudo aqui exposto, perante o vosso olhar."

Abril de 2011

 

Corria o ano de 2011, quando me decidi a editar esta minha primeira aventura pelo mundo da poesia.

Edição de autor, da capa ao miolo, por estas páginas dava a minha entrada naquele que viria a ser um dos meus mundos predilectos para habitar.

Hoje, Dia do Livro Português, lembrei-me de o recordar e de o sugerir, a quem aprecie este género literário e de arte, por que não dizê-lo.

Deixo aqui as indicações para quem o queira adquirir, o que, desde já, agradeço.

https://www.bubok.pt/ventasrrss/index/3564

Boas leituras!

no fim

por migalhas, em 02.01.24

acabo de morrer

deixei de olhar, de ver

o meu pénis entesa-se na perspectiva de me sobreviver

é dor, é prazer

num duelo de forças que não permite saber

quem sobrevive, quem no fim irá perecer

 

pesado ficou o ar

assim a terra, fogo e mar

deposta a derradeira vontade

num augúrio de imparável mortandade

coisa cortante, matéria nefasta

que a todos arrasta

a todos dilacera, nunca pela metade

sem credo ou idade

qual canto do cisne

capítulo final

assunto encerrado

pena capital

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira (2013)

Breve

por migalhas, em 27.12.23

Acordei e morri.

Nem um suspiro, um sussurro e faleci.

Um instante, uma efémera memória, foi tudo o que ficou de mim.

E a terra húmida a cobrir-me o corpo nu.

A ver-te partir, vida que nem vivi.

Olhos raiados, cegos, surdos e mudos de tudo aquilo que nunca vi.

Ali especados, incrédulos, a olharem o mundo como só eu o vi.

Que carrego tão leve é este, que nem o senti?

Foi por viver breve?

Que nada, nem ninguém.

Apenas o diabo que me leve.

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira (2013)

enclausurado

por migalhas, em 30.11.23

por quantos infernos já passei?

enclausurado ao mundo empírico e por ele ignorado

dele repelido como um escravo a que nada é permitido

nesta vida que nos cobra cada registo falhado

em papel timbrado, em folhas repassadas e com elas a história

o tempo que se escoa e eu com ele

de tudo afastado e neste estado omitido

que o nada se interpõe e de mim faz troça

ao que faço faz vista grossa

e cínico no ar espalha a mentira

que repetida aos sete ventos se torna verdade

maior a crueldade

para quem se queria parcela deste mundo

mas nele perdeu quanto tinha

a fé, a esperança, a identidade

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira (2013)

morte em vida

por migalhas, em 28.11.23

há uma ideia da morte

feita apenas em vida

de que ela nos é devida

como coisa merecida

no fim desta corrida

que um dia nos foi oferecida

 

como a mão da noiva comprometida

a que juramos fidelidade indefinida

como indefinida é a vida

e essa morte prometida

 

como cada passo que nos conduz

de um extremo ao outro desta linha em que avançamos

rumo à luz

que, por fim, alcançamos

às cegas, é certo

que nada é o que julgamos

 

de identidade indefinida

o que faz, faz sem maldade

como coisa merecida por esta vida oferecida

que não escolhe idade

ou tempo de validade

agora e na hora da nossa

seja feita a sua vontade

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira (2013)