por migalhas, em 26.09.24
vou foder-te, com quantos As o acto tem
vou comer-te, como o lobo fez à menina e à vovó também
vou enlaçar-te, abraçar-te, babar-te e na mecânica da coisa a minha mente focar
vou violar-te essas entranhas e sugar-lhes essa pútrida vontade de me veres assim, para cima de ti, vil, embrutecido, animalado
sujo e demente sobre a inocência desse teu corpo rendido e desmembrado
tu e eu e mais eu do que tu
nesse leito de dor e espanto
para te fazer rir, tanto
e vir, vir.
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2023)
por migalhas, em 24.09.24
Aqui estou eu, sentado
livros por todo o lado
centos de histórias por contar
milhentos enredos por desbravar
Aqui estou eu, escondido
nem achado nem tido
só os livros me veem
a olhá-los, embevecido
Cobre-nos um manto silencioso
que forra as capas guardiãs
de quantos capítulos acolhem em si
entre outras tantas, suas irmãs
Tamanha fonte aqui encontrei
onde esta sede venho sacear
a páginas tantas já nem sei
se é este saber que me vai confortar
Aqui sentado, rodeado
por tantas obras e tão ricas
o que se lê é solidão
neste meu rosto fechado
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2023)
por migalhas, em 22.09.24
calçei estas botas
a que o tempo deu que fazer
arrastam-se comigo, sem destino
que o que deixei, ficou naquela nuvem de pó asfixiante
juntos seguimos a jusante
mas é pó, sempre asfixiante, o que se segue ao prato principal
arame farpado, acho
na garganta este ardor mortal
é Domingo e não chove
as calças estão-me largas
o casaco nem se fala
ser andrajoso, movo-me sem me mexer
as roupas puídas, somam-me vidas
um dia já tive
fui abastado
não de bens, mas de quem me respeitasse
hoje sou este farrapo
a quem ladram os cães, se assanham os gatos
perdi as botas
descalço vou à fonte
também ela seca
é Domingo e não chove
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2023)
por migalhas, em 29.08.24
Não me peçam para falar em público
Por favor, suplico-vos
A exposição faz-me mal
A ribalta não é para mim
Não se arrisquem
não se sujeitem, e a mim também
Ali exposto, a vós, aos mortos, aos espíritos dos antepassados
Entre a espada e essas quatro paredes que me comprimem o peito
Retalham a respiração, me toldam a visão
Se ainda se mutilassem
Todos vós os olhos arrancassem, os ouvidos perfurassem, a língua cortassem
As mãos, sim as mãos, que para tanto servem, decepassem
Se por igual se despissem, todos, nu integral, como ao mundo vieram
Se assim diminuídos a sala abandonassem, em romaria, como quem, afinal, não queria
assistir a esta porcaria!
Ainda assim evitaria
Não, recusaria!
Determinantemente! Uma e outra vez
Que em público mudo sou e já não mudo
Estou bem assim, como estou.
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2023)
por migalhas, em 27.08.24
É tempo de sentirmos frio
mas quem nos abraça é o calor!
É tempo de brilhar a chuva
mas quem actua é o astro sol!
É tempo de dias cinzentos
de nuvens escuras, céu carregado
depressões, constipações
urgências à nora, por todo o lado
Mas o que se vê são esplanadas cheias
areais de gente feliz em fato de banho
esquece lá as botas e as meias
viva a vitamina B12, abaixo o ranho!
Acabou o tempo com rótulo
Já nada é o que deveria
Andamos ao sabor da maré
Nós, os responsáveis por esta anomalia
Assobiámos para o lado por tempo demasiado
Virámos as costas às evidências
Quisemos tudo sem olhar a meios
Resta-nos agora as consequências
Fizemos trinta por uma linha
Desrespeitámos a natureza
Deixámos o planeta feito num oito
Para vivermos hoje esta incerteza
Rezem agora, rezem
Que deus algum nos vai ajudar
Vestimos a pele do diabo
E é com ele que vamos acabar
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2023)
por migalhas, em 23.08.24
Afago o vento
Que por entre os dedos se esvai
Ser dócil enquanto brisa
Tumultuoso em vendavais
Vais onde, oh endiabrado!
Nesse teu rumo libertino
Obstinado, ritmo cadenciado
Dono e senhor do teu destino
Tu que não tens pernas, nem pés
Mas corres à velocidade que te apraz
De ponta a ponta, de lés a lés
Onde queres, vais
E a todos te dás
Tu que não te quedas por barreiras
Tu que personificas a liberdade
Tu que não conheces fronteiras
Nem tão pouco se te conhece a idade
Moderado, és forte, és vendaval
És como mais nada, assim igual
És fúria rebelde em movimento
És tudo em todo o lado ao mesmo tempo
És tu a ser vento
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2023)
por migalhas, em 21.08.24
mal tem filhos, a mulher desliga o vínculo de intimidade que até então mantinha com o seu companheiro
como se dele esperasse apenas a continuidade sua em forma de criança e nela se visse e passasse a integrar em permanência
quanto ao homem, resta-lhe a esperança de dias em que ela sobre ele relembre o antigo desejo e nele ainda veja quem capaz de lho saciar
que depois segue-se a terceira idade e daí para diante o que era mendigues, moribundo se torna de vez
então já na mão de netos e bisnetos, da prole que do sexo se perfez e que, involuntariamente, o aniquilou de vez.
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2014)
por migalhas, em 19.08.24
“O que é natural e fica bem é cada um usar o cabelo com que nasceu”. Passava em pescadinha, naquela velha televisão. Um anúncio, também ele com alguma idade, sobre um restaurador capilar que, nas palavras do locutor, usado diariamente dava ao cabelo a sua cor primitiva. A humidade daquela mal iluminada cave não permitia que o odor pestilento se desvanecesse. Agrilhoados às paredes, quase lado a lado, múltiplos corpos em putrefação testemunhavam a publicidade enganosa daquele elixir capilar. Qual cor primitiva, se nem o cabelo lhes sustinha nas cabeças. Dezenas de embalagens vazias jaziam pelo chão imundo. O passar dos anos havia-as deteriorado e, numa combinação de todo improvável, transformado num ácido altamente corrosivo. Ele bem tentou provar que a promessa se mantinha válida. Mas a morte do produto haveria de levar a tantas outras. Fechou a pesada porta metálica com estrondo e saiu à rua. A luz do dia feriu-lhe a vista. Inspirou fundo e, frustrado, avançou pelo passeio deserto.
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2024)
por migalhas, em 31.07.24
Escreve-me um poema.
Olha-me nos olhos e diz-me, por essa pena
quem sou
o que sou
onde estou
para onde devo ir
Se ao velejar neste mar chão
de brisa no rosto e fixo olhar no horizonte
posso ver-me em palavras descrito
em quantas rimas me dediques
nessa tua voz e visão
Ou então não.
Não haja palavras que me definam
rimas que me façam justiça
voz alguma que me descreva
e seja só este ser indefinido
sem rumo ou destino
que por aqui anda sem saber ao quê
porquê
E então te peça
escreve-me um poema
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2023)
por migalhas, em 26.07.24
Onírico som que me eleva
na casta bruma da noite fria
será o destino que me chama
nesta sórdida melancolia
O que fazer, para onde ir
que rumo seguir, daqui por diante
nesta odisseia que é ser
homem, mulher, pessoa errante
numa terra que nos é sempre distante
Voo contra ventos
afoito-me mar adentro
mas quem me lê o pensamento
e toma as rédeas da minha vida
é entidade desconhecida
que na penumbra conspira
se por aqui, se por ali
se isto, se aquilo
se ganho, se perco
se vivo ou se agora me despeço
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2023)