O Pensamento. Ler todas as obras literárias alguma vez publicadas, nesse único dia.
O plano. Insano, no mínimo.
Reunir os biliões de textos que, século após século, haviam sido selecionados para se partilharem com os leitores e, de uma penada, consumi-los todos. Uma penada de 24 horas, mas ainda assim uma brevidade assombrosa, atendendo às pretensões do projecto.
E as pausas? Para alimentação, necessidade básicas, higiene. Rentabilizar cada uma, era a palavra de ordem. Quem nunca leu na retrete, à mesa entre garfadas ou mesmo enquanto lava os dentes?
Os obstáculos maiores, as armadilhas, as impossibilidades, tudo isso é obra maior da nossa cabeça. Ela que é perita em imponderáveis que dificultem o bem-sucedido, em problemas ou dificuldades que impeçam os propósitos a que nos propomos. Razão mais do que suficiente para a eliminar da equação. Pô-la num cepo e ordenar ao carrasco:
- Ó tu, do capuz preto enfiado até à medula!
- Are you talkin’ to me?
- Vês aqui mais alguém enfiado num capuz preto ridículo como esse?
- Sei lá, pouco consigo ver à volta com isto enfiado cabeça abaixo.
Pois, que mais poderias ser senão carrasco – sussurrou.
- Sim, tens razão, de facto a tarefa parece de um grau de dificuldade elevado.
Para os teus parâmetros, então, nem se questiona. Voltou a sussurrar. Só davas mesmo para carrasco.
- Mas adiante. Tens um tempinho ou estás muito ocupado?
- Quem eu?
- Epá, começas a deixar-me em dúvida se deva recorrer a ti mesmo para o que estou quase a pedir-te.
- Não entendi.
- Também pouco interessa para o efeito.
Para além de que não me surpreende – novo sussurro.
- Bom, sem delongas e directo ao assunto: cortas-me a cabeça ou tenho de o pedir a um amigo secreto?
- Se quiseres que tudo fique em segredo, comigo não contes. Que eu conto cada cabeça que corto e até tenho um bloquinho onde assento tudo. Para além de que também conto tudo aos meus parceiros de copos na taberna, ao fim de cada dia.
- Certo. A ideia é só deixares cair o machado sobre este pescocinho macio e tenrinho e deixar que essa lâmina afiada cumpra o seu propósito. Achas que consegues? Tens um tempinho para isso?
- Tipo agora? É que estou aqui numa troca de mensagens que ainda pode demorar.
- Daí ter-te perguntado se tinhas um tempinho para isso.
- Ter até tenho. Acho que consigo arranjar aqui uma vaga por volta das três da tarde. Dava-te jeito a essa hora?
Já estou por tudo – algo sussurrado.
- Negócio fechado às três!
- Às três é quando abro o negócio, não entendeste. Queres que te explique de novo?
- Não, não, deixa estar.
Com este, um gajo perde a cabeça mesmo antes de ele a cortar, chiça!
O tempo passou e a hora agendada aproximava-se.
O gajo da cabeça, ainda com ela sobre os ombros, regressou ao convívio do carrasco e foi dar com ele, sem surpresa, a trocar mensagens. Que certas profissões exigem muito do competente profissional. O cuco anunciava as três da tarde e nesse instante o carrasco trocou o ecrã pela vida real. Ao fundo, o seu próximo cliente.
- Foi você que marcou para as três?
- Sim, sou eu mesmo.
- E acha que está preparado para o que lhe vou fazer?
- Bom, preparado a pessoa nunca estará inteiramente. Afinal, não é todos os dias que agendamos a subtracção de uma parte tão importante do nosso corpo.
- Pois, eu só pergunto que é para depois não virem dizer que afinal se arrependeram, e isso.
- Pois, seria algo complicado de fazer após a sua intervenção.
- Você é que sabe. Então vamos?
E lá foram eles, lado a lado, rumo a um espaço ermo e massacrado pelo sol abrasador. No meio daquele nada, um cepo. Ou dois, se contarmos agora com a presença do carrasco. O terceiro elemento, não se incluindo propriamente nessa classe, não deixou de repousar a sua cabeça naquele cepo amigo, como que aguardando por alguma consolação. Uma insolação, talvez. Mas seria por pouco tempo. Que o profissional do machado depressa o segurou e elevando-o no ar, que rasgou de rompão, num ápice deixou-o abater sobre aquele pescoço indefeso. Sobre aquela ponte que unira cabeça ao tronco. E nem o diabo havia acabado de esfregar o olho e já o pobre decapitado saldava a sua dívida, fazendo-o, se bem que por todo manchado de sangue, por MBWay. Operação concluída!
Um cumprimento breve e agora poderia ingressar em qualquer espectáculo sem pagar. Pois, como todos sabem, quem não tem cabeça não paga nada.
Satisfeito com a decisão, embora não se pudesse adivinhá-lo no seu rosto, o feliz decapitado tinha agora pela frente um desafio um pouco mais abrangente que qualquer um outro que a sua ex-cabeça lhe pudesse impor. Não pensara no assunto então e agora tal tarefa tornava-se ainda mais problemática. Como raio ia ele ler tanto livro num único dia se, entretanto e com tantas voltas e reviravoltas, já estava no dia seguinte ao dia mundial do livro? Sentou-se, colocou o espaço que fora da cabeça entre as mãos e chorou. Quer dizer, se ainda tivesse olhos. Suspirou fundo, se ainda tivesse vias nasais, e largou um sonoro desagrado, caso ainda o conseguisse por via da boca que agora lhe fora igualmente subtraída.
Perdera a sua oportunidade. O plano não correra como o previsto. E com tudo isso, tinha agora ainda a árdua tarefa de adiar todas as suas leituras sine die. É o que dá dar ouvidos a quem menos interessa. Neste caso, a um carrasco.
Moral da história: Leiam. Tudo o que podem e enquanto podem. Não vá um dia ficarem com cataratas.
Está anunciada a shortlist da edição deste ano do Booker Prize.
A cerimónia final está agendada para o dia 26 de Novembro, na qual ficaremos a saber quem será o autor, e o respectivo livro, vencedor, que consigo levará a módica quantia de 50 000 libras, qualquer coisa como 57 783,63€.
Tudo sobre este incontornável prémio literário, aqui: https://thebookerprizes.com/the-booker-library/prize-years/2023
Primeira página, segunda e outra e mais outra, numa sequência que nos agarra, com mais ou menos intensidade.
Muitas páginas ou menos do que isso, mas sempre recheadas de pomposas construções gramaticais.
Vida brota ao virar de cada nova passagem, personagens que se evidenciam, outras que por breves instantes marcam o seu espaço, como airosas mariposas num voo que tem tanto de belo como de errante.
A pena, em tempos que lá vão, a caneta, mais recentemente, hoje o teclado e um monitor impessoal que nos reflecte os pensamentos.
Desejos escondidos, pessoais encantos, que aqui ganham a força dos grandes momentos, sob a capa de um produto do imaginário.
As linhas da vida, lidas na mão de quem as escreve e se descreve ao mundo neste papel de maior ou menor qualidade.
Sou eu nestas palavras, sou eu aqui escondido. Não as olhem dessa forma, leiam-nas apenas, na simplicidade com que se perfilam.
Aqui me revejo, a páginas tantas.
Muitas, poucas, mais ou menos complexas, profundas no seu conteúdo.
Soam todas a mim, apenas a mim, eu revivido capítulo a capítulo.
Qualquer semelhança com figuras reais ou com a realidade vivida, deixou há muito de ser pura coincidência. Até por que essas não existem.
Um livro é um bilhete de identidade, qual ficção, qual produto de uma mente brilhante e fecunda de ideias.
Serve-se deste veículo com o qual se maquilha, se mascara, coloca peruca, bigode postiço.
De resto, de todo o resto, é o reflexo cuspido e escarrado do autor. Do tal que todos elogiam por ser diferente de toda a gente. Brilhante, até genial.
O livro sou eu e eu sou o livro.
Aquele mundo em que me revejo, o meu mundo, os meus segredos, a minha essência.
Parafraseando-me, eu feito eu nas entrelinhas com que vos brindo.
O epílogo, que antecede o fim.
Feliz, ou nem por isso, mas fim. Pois que tudo o tem. Até as minhas confissões. Por agora, até às próximas.
O índice. Remissivo. Para quem me queira rever aqui e ali, pontualmente.
Na lista deste ano pelo apetecível prémio de £ 50.000, Hilary Mantel, 2 vezes vencedora do Booker Prize, e a romancista Anne Tyler enfrentam oito romancistas estreantes nestas andanças.
A shortlist, de apenas seis livros, será anunciada a 15 de Setembro, com o vencedor final a ser revelado apenas em Novembro.
Relembro que o prémio do ano passado, apoiado pela primeira vez pela fundação de caridade Crankstart, foi controversamente compartilhado entre dois romances - The Testaments, de Margaret Atwood, e Girl, Woman, Other, de Bernardine Evaristo (Hamish Hamilton).
A shortlist do Women’s prize for fiction 2020, agora anunciada, é liderada por 3 nomes de peso, Mantel, Evaristo e O'Farrell.
Os finalistas do prémio de £ 30.000, anunciados após uma "longa reunião do Zoom", foram elogiados pelos juízes por se envolverem com as maiores questões contemporâneas.
Vamos ver o que dá o anúncio do vencedor final no próximo dia 9 de Setembro. Data que, por motivos relacionados com o Corona Vírus, teve de ser reagendada, estando inicialmente prevista para 3 de Junho.
Não tendo nenhum livro infantil editado, deixo aqui uma história para os mais pequenos, sempre com uma piscadela de olho aos mais crescidos.
O prédio que não quis crescer
Por Miguel Teixeira
Aquela fieira de prédios altos e majestosos, muitos deles a tocarem os céus, só era diferente de todas as outras fieiras de prédios, igualmente altos e majestosos, por uma pequena, mínima, razão, que quase nem se dava por ela. No meio dos seus gigantes irmãos, um minúsculo prédio, quase insignificante, mantivera a sua baixa estatura, resistido à tentação de crescer, de acompanhar os seus vizinhos naquela louca corrida às alturas. E de tal forma mantivera essa sua ideia – muito à conta de uma enorme teimosia - que já ninguém sequer tentava falar sobre o assunto. Passara a ser natural para todos os outros, viver paredes meias com uma “amostra de prédio”, como ainda lhe chegaram a chamar. Provocações a que não deu qualquer importância, convencido que estava da sua ideia fixa de ser assim mesmo, pequeno. Nada o mudara antes, da mesma forma que nada o iria mudar agora. Passados os piores momentos - aqueles iniciais em que a sua teimosia muitas discussões provocara – todos viviam agora em perfeita harmonia e plenamente convencidos de que assim seria para todo o sempre. Havia, no entanto, um prédio, a alguns quarteirões de distância, que ainda hoje não se conformava com esta situação, na sua opinião, ridícula. Por que razão aquele prédio se recusara a acompanhar o crescimento dos seus irmãos? Que estranha ideia o levara a tomar tão insólita decisão? Não querendo dar parte fraca – mas remoendo aquele assunto todos os dias, durante anos a fio – o inconformado prédio, de duzentos e trinta e três andares, lá se decidiu a questionar o parente que ele próprio considerava muito afastado.
Ouve lá, ó pequenote.
Estás a falar comigo?
Claro que estou a falar contigo. Vês aqui mais algum prédio a que possa chamar pequenote? – perguntava o enorme arranha-céus, agora todo encurvado como única forma de se chegar mais perto.
Não gosto que me chamem nomes associados ao meu tamanho.
Tudo bem, é justo. Não volto a fazê-lo. Mas há uma coisa que me tem dado a volta à telha e que gostava de esclarecer contigo.
Muito bem, fala.
Tem a ver com a tua altura.
Pois que outra coisa poderia ser! – desabafou – Conta-me lá então o é que tem a minha altura? – questionou em resposta, preparando-se para argumentar o que tantas vezes já repetira a outros curiosos como ele.
É que é muito baixa.
Pois é. E isso incomoda-te?
Não, incomodar não me incomoda. Mas, digamos, faz-me alguma confusão.
Faz-te confusão?
Sim, faz-me confusão porque é que tu não queres ser alto como todos nós. Tu alguma vez tocaste os céus ou experimentaste a sensação única que é ver tudo lá bem do alto?
Não, nem preciso.
Fazes ideia da vista espantosa que todos temos lá de cima e que tu, aqui de baixo, nem imaginas?
Mas quem é que te disse a ti que a vista que tenho aqui de baixo não é tanto, ou mesmo mais espantosa, do que a que tu tens lá de cima?
Essa agora! Como é que isso é possível?
Eu digo-te. Vocês cresceram, uns mais do que os outros, mas sempre com o objectivo de se afastarem cá de baixo. Tornaram-se altivos, frios, distantes e convencidos de que a vossa estatura era o que mais interessava. Mas enganam-se. Todos. O melhor da cidade está aqui em baixo, nas ruas. Porque o melhor da cidade são as pessoas e elas movem-se aqui, a dois passos de mim. Passeiam, correm, zangam-se, convivem, riem, choram, falam, tudo aqui, bem pertinho de mim. Sente-se o calor humano cá em baixo, não lá em cima. E isso sim, é o que verdadeiramente importa. Por um acaso vocês lá nas alturas têm essa visão?
Das pessoas? Não, lá de cima elas são... minúsculas. Quase tanto como tu.
Lá está! Percebes agora porque é que eu nunca quis crescer como todos vocês?
Acho que sim.
Como é que eu assistia a todo este espectáculo humano, a toda esta vida que pulsa a cada segundo na cidade, se estivesse lá no alto como vocês?
Tens razão. Nunca tinha pensado nisso.
E posto isso, despediu-se, convencido, como todos os outros antes dele. O alto e majestoso prédio, de muitos e muitos andares, regressou à sua posição vertical, compreendendo agora as razões que haviam levado aquele pequeno prédio a recusar-se a crescer. A recusar-se a ser mais um arranha-céus vaidoso e apenas preocupado em tocar o céu, esquecendo que o mais importante, e única razão da sua existência, vive cá em baixo, com os pés bem assentes na terra.
Hoje, Dia do Livro Português, deixo aqui como sugestão algo que me é muito querido, qual filho que um dia vi nascer, crescer, até se tornar num completo exemplar de que só me posso orgulhar. Estávamos em 2009, um ano de grande turbulência na minha vida que ainda assim deixou espaço à criação desta história, também ela fruto de um acontecimento marcante. Mais não digo, deixando aqui uma breve sinopse e o lugar da web onde podem encomendá-lo/comprá-lo, caso tenham curiosidade em lê-lo de uma ponta à outra, agora ainda por cima com mais tempo disponível.
"Perante a inesperada morte de uma colega de trabalho, um homem, até então vivendo uma vida banal, embarca numa busca incessante e obstinada pelas supostas causas desse súbito e prematuro desaparecimento.
A tarefa torna-se ainda mais complexa a partir do instante em que usa como guia desta sua fantástica viagem um espaço de escrita virtual (blog) criado pela sua colega, e até então seu desconhecido, no qual ela depositava as suas mais íntimas e reveladoras confissões, pensamentos, apelos."