Essa noite foi a primeira noite com que me deparei depois de ti.
Perdido e sem rumo, nela entrei e nela me perdi, a pensar apenas e só em ti. Por isso essa noite sabe a ti, sabe de ti e não me deixa mentir quando digo que chorei ao te ver partir.
Depois dessa, muitas outras noites eu já vivi, perdido e sem rumo, desolado por não mais te ter a meu lado, de coração destroçado, alma escura como este breu que depois se fez em dia também, desde então.
Como um denso nevoeiro, a minha visão tolda-se sem nada a que se agarrar e por isso aguardo o teu regresso para então esta escuridão se dissipar e de novo à luz do dia poder voltar.
Sem receios de que de novo possa amar e nesse imenso mar de tantas ilusões, sentimentos e outras sensações, me seja outra vez permitido sonhar, com noites de luar e dias, enfim, brilhantes, nos quais dois amantes se banhem de luz sem que isso seja a sua cruz, mas antes a sua sorte em vida, a de alguém que encontra o seu par e nele se acolhe e conforta, nele encontra guarida.
Confronto-me com aquele ser na cruz e partilho da sua dor. Também eu fui brindado em vida com uma pesada cruz que arrastei a cada dia da minha existência e que tem sido presságio da minha morte anunciada. Também eu fui flagelado e milhentas chagas se me abriram em rios de sangue que verti em direcção ao imenso mar onde me vejo submergir a cada espaço de tempo. Não deveria haver permissão para tamanho sofrimento. À flor da pele ou profundo como o abismo em que nos deixamos cair, atraídos pela tentação, pela vida de ficção com que julgamos iludir a realidade. E esta não é a minha realidade. Fechado entre quatro paredes de um quarto nu, de tudo despojado. Agradeço a dádiva, a esperança em mim depositada, a ajuda que me foi dada sem nada exigir em troca senão a minha redenção, a minha abnegação à vida de pecado a que me submeti e que tem impregnado os meus dias. Lamento desapontá-los guardiões da fé, da crença num poder do além, mas essa promessa jamais a poderia cumprir. Pois não é esta a minha realidade. Sou animal selvagem e não admito cativeiro algum. Ninguém nem nada me priva da liberdade que me percorre as veias, que me permite respirar. Nem que isso signifique a morte. Pois também ela é libertação. A suprema libertação.
Excerto do projecto "Crónicas de Serathor", de Miguel Santos Teixeira.