Do nada, a campainha toca. Desloco-me ao vídeo porteiro, olho o écran e vejo que é o carteiro. Abro-lhe a porta e ele sobe de elevador ao meu andar. Espero-o à entrada do meu apartamento. Trocamos galhardetes, ele fica com o meu primeiro e último nome e eu com a encomenda que esperava ansiosamente. Despedimo-nos e confirmo que chegou a minha Smart Home Camera. Awesome! A leitura das instruções é rápida, pois é simples, hoje em dia, colocar a trabalhar um dispositivo destes. É pequena, portátil, leve como uma pena, 220 gramas, incrível! Encomendei-a para poder ver o gato, enquanto estou fora. Vamos a isso! É só ligar à corrente e imediatamente acende uma luz vermelha. Está on. Tem uma visão de 360º, vou ter tudo debaixo de olho. Descarrego e instalo a app que a vai controlar à distância e mostrar-me no telemóvel cada movimento do Simão. Sim, por que também tem detector de movimento. Coloco a câmara no spot que melhor cobre a área que pretendo captar e lá estou eu, ali ao fundo, a mexer no telemóvel. Daqui, do telemóvel, vejo-me ali, captado pela câmara. Aceno para a câmara e sinto-me duplicado. Experimento o comando que permite a rotação da câmara. Perfaz na perfeição o que promete, 360º. Vou ter mesmo tudo debaixo de olho. Volto à posição inicial e lá estou eu de novo, no mesmíssimo lugar, a olhar o telemóvel. É estranho, ver-me ali, daqui. E mais estranho ainda, estar a acenar de novo. Mas não eu aqui, aquele eu ali. Sem tirar os olhos do telemóvel, aquele eu ali, no écran do meu telemóvel, acena-me, lá ao fundo. Faço um zoom com os dedos indicador e polegar e sou mesmo eu, não há dúvida. Pode ter sido a imagem que congelou ou que a câmara tenha gravado. Continua a acenar-me, sem desviar os olhos do telemóvel. Eu olho directamente para a câmara, lá ao fundo, que, supostamente, está a gravar-me. Volto a olhar o telemóvel e agora eu saí de cena. Já não estou a olhar o telemóvel e a gerir os comandos da app. O telemóvel cai no chão. No écran, repousa aquilo que a câmara estava a captar. Atraído pelo som, o Simão aparece, vindo lá do quarto, e mia. Cheira o telemóvel e eu posso vê-lo, o enorme focinho encostado à câmara. O telemóvel hiberna, o écran faz-se negro e eu, desapareço para sempre.
Isolados naquela remota cabana de montanha, pai e filha desfrutam de um tempo de calma e sossego, só ali possível.
Lá fora, anoitece ao ritmo de uma suave brisa.
Lá dentro, reina o silêncio. Apenas interrompido pelo abrir de uma porta.
Na sala, trabalhando no seu último livro, o pai é surpreendido pela presença da filha. Esta olha-o de cima, enterrado no sofá, para lhe dizer:
- Pai, a porta do meu quarto abriu-se de repente. E já não é a primeira vez que acontece.
O pai, fixando-lhe os olhos, responde-lhe:
- Estou a ver que não te contaram a lenda que por aí corre sobre esta cabana.
- Lenda?
- Sim, dizem que é habitada por estranhos seres que assumem a figura de pessoas que nos são conhecidas.
- Conhecidas? Como assim?
- Por exemplo, no nosso caso, poderiam fazer-se passar por mim, teu pai.
A filha mais não disse.
O seu breve grito desesperado ecoou pela sombria montanha, rapidamente consumido por esta. Uma súbita rajada de vento varreu as frondosas copas das árvores, como numa dança de celebração. E o silêncio voltou a abater-se sobre a cabana. De novo esventrada de outros seres que não aqueles que, por diversão, se alimentam das incautas pessoas que ali vão à procura de calma e sossego.