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TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

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Smart Home Camera

por migalhas, em 12.09.23

Smart Home Camera

 

Do nada, a campainha toca. Desloco-me ao vídeo porteiro, olho o écran e vejo que é o carteiro. Abro-lhe a porta e ele sobe de elevador ao meu andar. Espero-o à entrada do meu apartamento. Trocamos galhardetes, ele fica com o meu primeiro e último nome e eu com a encomenda que esperava ansiosamente. Despedimo-nos e confirmo que chegou a minha Smart Home Camera. Awesome! A leitura das instruções é rápida, pois é simples, hoje em dia, colocar a trabalhar um dispositivo destes. É pequena, portátil, leve como uma pena, 220 gramas, incrível! Encomendei-a para poder ver o gato, enquanto estou fora. Vamos a isso! É só ligar à corrente e imediatamente acende uma luz vermelha. Está on. Tem uma visão de 360º, vou ter tudo debaixo de olho. Descarrego e instalo a app que a vai controlar à distância e mostrar-me no telemóvel cada movimento do Simão. Sim, por que também tem detector de movimento. Coloco a câmara no spot que melhor cobre a área que pretendo captar e lá estou eu, ali ao fundo, a mexer no telemóvel. Daqui, do telemóvel, vejo-me ali, captado pela câmara. Aceno para a câmara e sinto-me duplicado. Experimento o comando que permite a rotação da câmara. Perfaz na perfeição o que promete, 360º. Vou ter mesmo tudo debaixo de olho. Volto à posição inicial e lá estou eu de novo, no mesmíssimo lugar, a olhar o telemóvel. É estranho, ver-me ali, daqui. E mais estranho ainda, estar a acenar de novo. Mas não eu aqui, aquele eu ali. Sem tirar os olhos do telemóvel, aquele eu ali, no écran do meu telemóvel, acena-me, lá ao fundo. Faço um zoom com os dedos indicador e polegar e sou mesmo eu, não há dúvida. Pode ter sido a imagem que congelou ou que a câmara tenha gravado. Continua a acenar-me, sem desviar os olhos do telemóvel. Eu olho directamente para a câmara, lá ao fundo, que, supostamente, está a gravar-me. Volto a olhar o telemóvel e agora eu saí de cena. Já não estou a olhar o telemóvel e a gerir os comandos da app. O telemóvel cai no chão. No écran, repousa aquilo que a câmara estava a captar. Atraído pelo som, o Simão aparece, vindo lá do quarto, e mia. Cheira o telemóvel e eu posso vê-lo, o enorme focinho encostado à câmara. O telemóvel hiberna, o écran faz-se negro e eu, desapareço para sempre.

 

FIM

 

© Copyright Migalhas (100NEXUS_2023)

A cabana

por migalhas, em 07.09.23

A cabana

 

Isolados naquela remota cabana de montanha, pai e filha desfrutam de um tempo de calma e sossego, só ali possível.

Lá fora, anoitece ao ritmo de uma suave brisa.

Lá dentro, reina o silêncio. Apenas interrompido pelo abrir de uma porta.

Na sala, trabalhando no seu último livro, o pai é surpreendido pela presença da filha. Esta olha-o de cima, enterrado no sofá, para lhe dizer:

- Pai, a porta do meu quarto abriu-se de repente. E já não é a primeira vez que acontece.

O pai, fixando-lhe os olhos, responde-lhe:

- Estou a ver que não te contaram a lenda que por aí corre sobre esta cabana.

- Lenda?

- Sim, dizem que é habitada por estranhos seres que assumem a figura de pessoas que nos são conhecidas.

- Conhecidas? Como assim?

- Por exemplo, no nosso caso, poderiam fazer-se passar por mim, teu pai.

A filha mais não disse.

O seu breve grito desesperado ecoou pela sombria montanha, rapidamente consumido por esta. Uma súbita rajada de vento varreu as frondosas copas das árvores, como numa dança de celebração. E o silêncio voltou a abater-se sobre a cabana. De novo esventrada de outros seres que não aqueles que, por diversão, se alimentam das incautas pessoas que ali vão à procura de calma e sossego. 

 

FIM

 

© Copyright Migalhas (100NEXUS_2023)

é o mar

por migalhas, em 27.07.23

olhei um dia o mar

com tal fulgor dele me abeirei

senti-lhe a chama, sugou-me a alma

imenso aroma de quem me ama

 

o seu cerne eu violei

no seu âmago me encontrei

tudo o que é imenso ele contém

capa, miolo, errata

paixão eterna, eterno desdém

 

olhei um dia o mar

infinita carapaça que banha este lugar

reticência constante do meu olhar

aqui onde existe também terra e céu

um quarto de esperança, uma sala com vista

as faces da lua

 

mas é o mar

esse espelho que me acolhe e me devolve

num reflexo sem par

 

© Copyright Migalhas (100NEXUS_2013)

onde fui

por migalhas, em 25.07.23

Se tudo se fundisse num só

Se céu e terra confluíssem num único ponto, nem perto nem distante

Se a luz tremeluzente desta vela que me alumia fosse foco de inspiração

Ou se o mar que morre na praia fosse seu reflexo  

Que uma caixa não é apenas uma caixa

Pois que ela é liberdade, quando se abre e expande vontade

Qual manto ao vento

Qual desejo ou intento

Qual majestosa força que num sopro se ergue e num respirar se esvai

Que eu aqui nada sou

Se bem que vejo ser

Tudo num instante fugaz

Num bater de asas que revolve o mundo

Aquele onde fui

Um dia há muito tempo atrás

 

© Copyright Migalhas (100NEXUS_2013)

vazios

por migalhas, em 20.07.23

os armários estão vazios

eu parti, tu partiste, partimos

elos quebrados

forma e conteúdo desligados

ponto final parágrafo

de hoje em diante desasados

 

os armários estão vazios

do que fomos pouco encerram

malas feitas, vidas desfeitas

ocas do tempo que julgámos eterno

agora a jurar promessas no inferno

 

os armários estão vazios

as paredes nuas, frias

nas prateleiras resta o pó

que connosco conviveu e a mesa partilhou

arrelias, ténues alegrias

guerras, tantas guerras

a toda a hora, todos os dias

 

os armários estão vazios

o silêncio varreu esta casa

sepulcral, integral

resta o odor a bafio

que até o ar foi a enterrar

 

os armários estão vazios

governa o escuro

que a luz recusa-se a entrar

é bom para os fantasmas

dessa efémera paixão

a que aqui jaz desde então

nos armários, nas prateleiras, no chão.

 

© Copyright Migalhas (100NEXUS_2013)

pó vagabundo

por migalhas, em 18.07.23

o pó assenta, sempre o faz

desde que instigado, no seu voo alado

deter-se, ficar-se, é incapaz

bicho irrequieto que vive em todo o lado

 

só nós teimamos em ocultá-lo

invisível torná-lo

removendo-o, varrendo-o, daqui ou doutro lugar

na certeza de que, adiante, acaba por pousar

 

daqui, dali, de lado algum ele sai

teimoso, impassível, a lado algum ele vai

omnipresente, ser intransigente

cabeça de cartaz, coisa resistente

 

apenas na nossa cabeça o eliminamos

na supérflua tarefa que nos faz gente

nós, tolos humanos

dois passos atrás, meio para a frente

 

o mesmo pó a que seremos lançados

por ele tragados no seu contentamento

aos leões esfomeados, pobres de nós

que nada nos sobra em testamento

 

é pó, é terra, é o fim do caminho

é arena despida do que é humano

que este morrer é sempre sozinho

é meu, é teu, é destino profano    

 

© Copyright Migalhas (100NEXUS_2013)

Há de haver

por migalhas, em 14.07.23

à imagem deste que julgo ser

à beira de um imaginário precipício

há tudo quanto se me escapa

daqui até onde a minha mão alcança

 

há o que não pressinto, nem vejo

neste meu infinito desejo

há o que calo e não digo

como quem silencia um inimigo

 

no universo há tudo isto

mais aquilo que não entendo

amálgama de que sou feito

para lá deste espaço e tempo em que existo

 

© Copyright Migalhas (100NEXUS_2013)

d'amor!

por migalhas, em 12.07.23

“De quantos encontros se faz uma vida De quantos

Dormente

por migalhas, em 06.07.23

Em revoadas

Sem tempo definido

Ao longe a memória

Em fagulhas de um ardor doente

Como farpas de um amor quente

Que não se olha

Mas que se sente

E assim o corpo, dormente

 

E depois, quando já nada nem ninguém

No coração de uma qualquer noite

Os rostos sucedem-se

Tocam os sinos a rebate

E no cerne dessa fúria

Surgem então à tona

Esses ses tão espessos

Breu que alumia

Esta espécie de agonia

Que sem tempo definido

E em revoadas de uma sarcástica dor

Não deixam dúvidas

Mas o corpo assim, e também a mente

dormente

 

© Copyright Migalhas (2014)

É fogo

por migalhas, em 04.07.23

Alimenta o fogo

Alimenta-o bem

Dá-lhe o que ele gosta e vê-o crescer

Ele que tudo consome

Seja carne

Da tua, da minha

Ou carne seja

Que nunca é demais, pois nunca sobeja

Servida à gula do seu ser

No cerne do que ele é

Besta irada em dança de labaredas

Num apelo de sofreguidão incansável

Ele insaciável

Ele monstro infernal que no calor da emoção se consome

E a vida obscurece num negrume que transparece

Desse seu modo violento de quem chama ardentemente

De quem se sabe demente

E não recua jamais

Que o seu fito é para a frente

Obcecado, doente

Até se fazer distante

Passado, história

Um rasto de cinzas ao vento

Extinto o momento

 

© Copyright Migalhas (2016)