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TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

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Dia Internacional do Livro Infantil

por migalhas, em 02.04.20

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Não tendo nenhum livro infantil editado, deixo aqui uma história para os mais pequenos, sempre com uma piscadela de olho aos mais crescidos.

O prédio que não quis crescer

Por Miguel Teixeira

 

Aquela fieira de prédios altos e majestosos, muitos deles a tocarem os céus, só era diferente de todas as outras fieiras de prédios, igualmente altos e majestosos, por uma pequena, mínima, razão, que quase nem se dava por ela. No meio dos seus gigantes irmãos, um minúsculo prédio, quase insignificante, mantivera a sua baixa estatura, resistido à tentação de crescer, de acompanhar os seus vizinhos naquela louca corrida às alturas. E de tal forma mantivera essa sua ideia – muito à conta de uma enorme teimosia - que já ninguém sequer tentava falar sobre o assunto. Passara a ser natural para todos os outros, viver paredes meias com uma “amostra de prédio”, como ainda lhe chegaram a chamar. Provocações a que não deu qualquer importância, convencido que estava da sua ideia fixa de ser assim mesmo, pequeno. Nada o mudara antes, da mesma forma que nada o iria mudar agora. Passados os piores momentos - aqueles iniciais em que a sua teimosia muitas discussões provocara – todos viviam agora em perfeita harmonia e plenamente convencidos de que assim seria para todo o sempre. Havia, no entanto, um prédio, a alguns quarteirões de distância, que ainda hoje não se conformava com esta situação, na sua opinião, ridícula. Por que razão aquele prédio se recusara a acompanhar o crescimento dos seus irmãos? Que estranha ideia o levara a tomar tão insólita decisão? Não querendo dar parte fraca – mas remoendo aquele assunto todos os dias, durante anos a fio – o inconformado prédio, de duzentos e trinta e três andares, lá se decidiu a questionar o parente que ele próprio considerava muito afastado.

  • Ouve lá, ó pequenote.
  • Estás a falar comigo?
  • Claro que estou a falar contigo. Vês aqui mais algum prédio a que possa chamar pequenote? – perguntava o enorme arranha-céus, agora todo encurvado como única forma de se chegar mais perto.
  • Não gosto que me chamem nomes associados ao meu tamanho.
  • Tudo bem, é justo. Não volto a fazê-lo. Mas há uma coisa que me tem dado a volta à telha e que gostava de esclarecer contigo.
  • Muito bem, fala.
  • Tem a ver com a tua altura.
  • Pois que outra coisa poderia ser! – desabafou – Conta-me lá então o é que tem a minha altura? – questionou em resposta, preparando-se para argumentar o que tantas vezes já repetira a outros curiosos como ele.
  • É que é muito baixa.
  • Pois é. E isso incomoda-te?
  • Não, incomodar não me incomoda. Mas, digamos, faz-me alguma confusão.
  • Faz-te confusão?
  • Sim, faz-me confusão porque é que tu não queres ser alto como todos nós. Tu alguma vez tocaste os céus ou experimentaste a sensação única que é ver tudo lá bem do alto?
  • Não, nem preciso.
  • Fazes ideia da vista espantosa que todos temos lá de cima e que tu, aqui de baixo, nem imaginas?
  • Mas quem é que te disse a ti que a vista que tenho aqui de baixo não é tanto, ou mesmo mais espantosa, do que a que tu tens lá de cima?
  • Essa agora! Como é que isso é possível?
  • Eu digo-te. Vocês cresceram, uns mais do que os outros, mas sempre com o objectivo de se afastarem cá de baixo. Tornaram-se altivos, frios, distantes e convencidos de que a vossa estatura era o que mais interessava. Mas enganam-se. Todos. O melhor da cidade está aqui em baixo, nas ruas. Porque o melhor da cidade são as pessoas e elas movem-se aqui, a dois passos de mim. Passeiam, correm, zangam-se, convivem, riem, choram, falam, tudo aqui, bem pertinho de mim. Sente-se o calor humano cá em baixo, não lá em cima. E isso sim, é o que verdadeiramente importa. Por um acaso vocês lá nas alturas têm essa visão?
  • Das pessoas? Não, lá de cima elas são... minúsculas. Quase tanto como tu.
  • Lá está! Percebes agora porque é que eu nunca quis crescer como todos vocês?
  • Acho que sim.
  • Como é que eu assistia a todo este espectáculo humano, a toda esta vida que pulsa a cada segundo na cidade, se estivesse lá no alto como vocês?
  • Tens razão. Nunca tinha pensado nisso.

E posto isso, despediu-se, convencido, como todos os outros antes dele. O alto e majestoso prédio, de muitos e muitos andares, regressou à sua posição vertical, compreendendo agora as razões que haviam levado aquele pequeno prédio a recusar-se a crescer. A recusar-se a ser mais um arranha-céus vaidoso e apenas preocupado em tocar o céu, esquecendo que o mais importante, e única razão da sua existência, vive cá em baixo, com os pés bem assentes na terra.

 

FIM

Dia Mundial do Livro 2016 - UM LIVRO NUM DIA

por migalhas, em 18.04.16

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Após o sucesso da edição de 2015, a Chiado Editora reeditará este ano a iniciativa "Um Livro Num Dia", na comemoração do Dia Mundial do Livro a 23 de Abril, sábado.

Autores reconhecidos, escritores emergentes ou meros sonhadores, podem participar na edição ao vivo de “Um livro num dia”.

Neste dia, a partir das 09h00, a Chiado Editora vai montar um escritório móvel na Praça Luís de Camões, em Lisboa, onde o público pode apresentar os seus textos originais de forma a integrarem esta edição especial. Os contos devem ser entregues em formato digital (PEN), com um limite de 2.000 caracteres, até às 12h00.

Nenhum texto será admitido antes das 9h de dia 23 de Abril. Todas as etapas do processo de Edição de um livro terão lugar a 23 de Abril e à vista de todos.

Todas as fases de construção do livro podem ser acompanhadas in loco, desde a revisão à paginação e design da capa e, às 13h00, o livro segue para a gráfica. Ao final da tarde (18h30), regressa ao mesmo local, onde 1.000 exemplares da obra serão distribuídos gratuitamente ao público.

O livro ficará então disponível para compra em www.chiadoeditora.com e, no dia seguinte, entrará no circuito comercial podendo ser adquirido junto das maiores lojas.

Durante a tarde, o escritório mantém-se aberto, em modo OPEN OFFICE DAY, proporcionando a todos os que passem pelo espaço a oportunidade de conhecer os meandros do trabalho editorial, conversar com os nossos  Editores e colocar todas as suas questões, dúvidas, sonhos, projetos, etc.

 

Edição ao vivo de “Um livro num dia” – Chiado Editora

23 de Abril, Dia Mundial do Livro

Praça Luís de Camões, ao Chiado, Lisboa

 

09h00-12h00 :: Entrega de textos originais, revisão, paginação e design de capa

13h00 :: Livro dá entrada na Gráfica

14h00-18h00 :: Open Office Day

18h30 :: Lançamento do livro e distribuição gratuita de 1.000 exemplares do livro.

 

Uma iniciativa que se aplaude, na sua segunda edição. Participem!

EU nos Talentos Ocultos – Vol.1 (contos)

por migalhas, em 06.03.15

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É com este conto original, "Nay e Roby", que EU marco presença nos Talentos Ocultos – Vol.1 (edição relativa ao conto).

 

"Nay e Roby"

 

Nay e Roby passeavam no areal da praia. De onde provinha tanta quantidade de areia? Questionava-se surpreendido o pequeno Roby. Trá-la o mar, dizia-lhe a sua irmã, um pouco mais velha que ele e desse modo a querer demonstrar a sua natural e inevitável supremacia em termos de conhecimento. Corriam, pulavam, dunas acima, dunas abaixo, à beira-mar, mar adentro. O sol a pique mostrava-se mais e mais feroz e eles como carne fresca naquele extenso grelhador de areia composto. Tanto mar, assim como a areia. De onde vem toda esta água? Perguntava o sempre curioso Roby. Vem das chuvas, das nuvens negras que por vezes nos sobrevoam as cabeças, respondia-lhe a esperta da irmã, mais velha, mais sapiente. E o céu acima deles, azul, sem mácula, liso, sem rugas ou qualquer espécie de atropelo que lhes obstruísse uma visão ampla do tecto deste mundo cheio de encantos e de fenómenos tão estranhos. De onde vem tanto céu? E tanto azul? Olha, vem do espaço, que o deixou cair para nós o podermos ver e assim ele, o espaço, se poder esconder do nosso olhar, por detrás deste céu, entendes? E ele que sim, como sempre, que Nay era mais velha e mais sábia que ele. Aliás, ela sabia tudo e a ele só lhe competia aprender com ela e com a sua imensa sabedoria, própria dos irmãos mais velhos. E então novo fenómeno. Novo e inesperado, a abater-se bem sobre aquelas duas mentes, a curiosa e a outra, a que a tudo dava resposta. Um primeiro raide, perfeita a formação, o líder adiante, a mostrar aos restantes, muitos, mais de uma dezena, duas, o caminho. Lindos, ordenados, pretos, todos eles pretos, dezenas de patos bravios que rasgavam o azul do céu e pela primeira vez naquela manhã lhe adicionavam um padrão que se movia, que avançava ondulando, com um propósito, fixo, definido. Uns atrás dos outros, ora em U, ora em V ou mesmo num inquestionável Y, em quantas formas mutáveis, mas sempre ordeiros e a respeitarem a hierarquia de um líder obstinado em avançar, em progredir, sempre lá na frente daquele fiel pelotão. Todos seguiam incansáveis, compenetrados da sua missão, afastando-se a cada bater de asas do olhar deleitado daquele casalinho de tenra idade que entretanto a tudo cedera para simplesmente os observar, naquele espectáculo de rara beleza. Mas eis que ao longe, e um pouco à laia de miragem, aquela linha negra desenhada pelo numeroso bando de patos selvagens em viagem pelo céu, ganhava uma outra forma, assemelhando-se a um imenso picotado, a um tracejado pronto a ser cortado e que assim parecia querer dar acesso a algo existente para lá deste imediato à vista de todos. A algo que se ocultava escondido para lá deste cenário que adorna as nossas vivências mundanas e banais, a que chamamos de céu. De onde vêm tantos pássaros? Indagou o espantado Roby. São patos, tolo, corrigiu-o a irmã. E vêm de longe, de outros países, andam sempre em viagem, em busca de temperaturas que a eles lhes agradam mais. É assim mesmo, é da sua natureza, rematou-lhe ela. E novo esgar de espanto. Que sobre eles uma outra manifestação bem ensaiada, a rumar para longe, coisa da sua natureza, quem sabe na peugada dos que já lhes levavam algum avanço. Perfeito, o desenho. Deslumbrante, o efeito. E já a fugirem à perfeita definição da vista, tal e qual os seus pares anteriores, novo truque da visão, a parecer que eles, a linha que formavam nos ares que cruzavam, era não uma linha contínua mas sim um tracejado, tentador, tanto até para quem o sabia impossível, mas ainda assim... Nay não lhe resistiu. Lançou mãos ao ar, ao espaço de céu preenchido por aquele ilusório picotado, e, servindo-se dele, abriu uma brecha no pano de fundo, naquele papel de cenário, numa extensão breve, o equivalente à linha tracejada que ilusoriamente fora formada, rasgando-o. Um gesto simples, impensado, mas que dera passagem a algo que sempre se ocultara das vistas, pois escondido se encontrava desde sempre para lá deste suposto céu de calma feito. Ao contrário deste, agora rasgado numa ínfima parte, o que se vislumbrava para lá dele era tudo menos azul, era tudo menos brilhante, era tudo menos belo. Antes era negro, avassalador, assustador, e em nada compatível com o que momentos antes reinava numa perfeição e numa paz que se cria real. As suas mãos penetraram aquele espaço desconhecido, aquela fenda insólita, e imediatamente pagaram pela ousadia. Sugadas foram, tal a força, o ímpeto, que nem um adulto lhe resistiria, quanto mais uma criança como Nay. Puxada de surpresa, voou pelo ar e desapareceu por aquela brecha de um tempo e de um espaço desconhecidos, por aquele buraco negro que de imediato se saciou, se fechou, repondo a calma e a ordem e o cenário reinantes momentos antes daquela inoportuna interferência. Roby ficou perplexo. Incapaz de falar o que fosse, apático e estático ficou, qual estátua a observar o insólito da cena, a sua irmã a desaparecer em pleno ar, por entre um buraco por ela exposto, aberto num céu que nada deixava adivinhar, muito menos um desenlace deste calibre. Bem acima da sua cabeça, da sua inocente compreensão, novo mistério do universo, este a deixá-lo órfão de explicação, pelo que reposta a calma inicial, Roby atirou para o ar:

- E agora, mana? Quem me vai explicar o mundo?

Em resposta à sua questão, uma devastadora escuridão abateu-se sobre ele e sobre tudo o que lhe era circundante. Era o fim. Igualmente assim entendido por quantos expressavam o seu agrado, de início timidamente, um, dois aplausos, para num crescendo de entusiasmo a totalidade da assistência se esvair num estrondo contagiante de outros e outros aplausos, numa trovoada de apreço e aprovação vinda de quem até então aguardara expectante no silêncio do imenso auditório esgotado. Acesas as luzes, os focos incidiram o seu calor sobre os dois pequenos actores que, orgulhosos da sua actuação e visivelmente agradecidos, o expressaram vénia após vénia após vénia.

 

FIM


© Copyright Migalhas (100NEXUS_2014)

O prédio que não quis crescer

por migalhas, em 13.02.15

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Integrado na Quinzena da Leitura do Colégio da Torre em Oeiras, e mais concretamente no evento Maratona de Leitura, em que professores, colaboradores do Colégio da Torre e Pais foram convidados a contar uma história às crianças da escola, coube-me a mim hoje a minha vez de participar com a leitura de um antigo conto infantil meu que, a ver pela reacção dos presentes, foi do agrado geral.

Aqui fica então, para todos vocês que não puderam estar presentes e assim ouvir em primeira mão. Espero que gostem.

O prédio que não quis crescer

Aquela fieira de prédios altos e majestosos, muitos deles a tocarem os céus, só era diferente de todas as outras fieiras de prédios, igualmente altos e majestosos, por uma pequena, mínima, razão, que quase nem se dava por ela. No meio dos seus gigantes irmãos, um minúsculo prédio, quase insignificante, mantivera a sua baixa estatura, resistido à tentação de crescer, de acompanhar os seus vizinhos naquela louca corrida às alturas. E de tal forma mantivera essa sua ideia – muito à conta de uma enorme teimosia - que já ninguém sequer tentava falar sobre o assunto. Passara a ser natural para todos os outros, viver paredes meias com uma “amostra de prédio”, como ainda lhe chegaram a chamar. Provocações a que não deu qualquer importância, convencido que estava da sua ideia fixa de ser assim mesmo, pequeno. Nada o mudara antes, da mesma forma que nada o iria mudar agora. Passados os piores momentos - aqueles iniciais em que a sua teimosia muitas discussões provocara – todos viviam agora em perfeita harmonia e plenamente convencidos de que assim seria para todo o sempre. Havia, no entanto, um prédio, a alguns quarteirões de distância, que ainda hoje não se conformava com esta situação, na sua opinião, ridícula. Por que razão aquele prédio se recusara a acompanhar o crescimento dos seus irmãos? Que estranha ideia o levara a tomar tão insólita decisão? Não querendo dar parte fraca – mas remoendo aquele assunto todos os dias, durante anos a fio – o inconformado prédio, de duzentos e trinta e três andares, lá se decidiu a questionar o parente que ele próprio considerava muito afastado:

- Ouve lá, ó pequenote.

- Estás a falar comigo?

- Claro que estou a falar contigo. Vês aqui mais algum prédio a que possa chamar pequenote? – perguntava o enorme arranha-céus, agora todo encurvado como única forma de se chegar mais perto.

- Não gosto que me chamem nomes associados ao meu tamanho.

- Tudo bem, é justo. Não volto a fazê-lo. Mas há uma coisa que me tem dado a volta à telha e que gostava de esclarecer contigo.

- Muito bem, fala.

- Tem a ver com a tua altura.

- Pois que outra coisa poderia ser! – desabafou – Conta-me lá então o que é que tem a minha altura? – questionou em resposta, preparando-se para argumentar o que tantas vezes já repetira a outros curiosos como ele.

- É que é muito baixa.

- Pois é. E isso incomoda-te?

- Não, incomodar não me incomoda. Mas, digamos, faz-me alguma confusão.

- Faz-te confusão?

- Sim, faz-me confusão porque é que tu não queres ser alto como todos nós. Tu alguma vez tocaste os céus ou experimentaste a sensação única que é ver tudo lá bem do alto?

- Não, nem preciso.

- Fazes ideia da vista espantosa que todos temos lá de cima e que tu, aqui de baixo, nem imaginas?

- Mas quem é que te disse a ti que a vista que tenho aqui de baixo não é tanto, ou mesmo mais espantosa, do que a que tu tens lá de cima?

- Essa agora! Como é que isso é possível?

- Eu digo-te. Vocês cresceram, uns mais do que os outros, mas sempre com o objectivo de se afastarem cá de baixo. Tornaram-se altivos, frios, distantes e convencidos de que a vossa estatura era o que mais interessava. Mas enganam-se. Todos. O melhor da cidade está aqui em baixo, nas ruas. Porque o melhor da cidade são as pessoas e elas movem-se aqui, a dois passos de mim. Passeiam, correm, zangam-se, convivem, riem, choram, falam, tudo aqui, bem pertinho de mim. Sente-se o calor humano cá em baixo, não lá em cima. E isso sim, é o que verdadeiramente importa. Por um acaso vocês lá nas alturas têm essa visão?

- Das pessoas? Não, lá de cima elas são... minúsculas. Quase tanto como tu.

- Lá está! Percebes agora porque é que eu nunca quis crescer como todos vocês?

- Acho que sim.

- Como é que eu assistia a todo este espectáculo humano, a toda esta vida que pulsa a cada segundo na cidade, se estivesse lá no alto como vocês?

- Tens razão. Nunca tinha pensado nisso.

E posto isso, despediu-se, convencido, como todos os outros antes dele. O alto e majestoso prédio, de muitos e muitos andares, regressou à sua posição vertical, compreendendo agora as razões que haviam levado aquele pequeno prédio a recusar-se a crescer. A recusar-se a ser mais um arranha-céus vaidoso e apenas preocupado em tocar o céu, esquecendo que o mais importante, e única razão da sua existência, vive cá em baixo, com os pés bem assentes na terra.

 

FIM

(des)conto de natal

por migalhas, em 24.12.14

Juvenal nasceu no Natal.

Na precisa madrugada em que Jesus o salvador também o fez, tal e qual.

Dizem até que, com ele, uma nova estrela se formou no espaço sideral.

Uma estrela que serviu de guia a três estarolas estouvados que, após assaltarem uma estação de serviço e deixarem em mau estado o funcionário que teve a infeliz ideia de lhes fazer frente, rumaram ao que assumiram ser seu destino.

Mas antes disso, por pouco Juvenal não nascia no curral.

Sua mãe apenas teve tempo de se recolher no decrépito celeiro e entre a palha amontoada e uma cama improvisada, lá se dedicou à empreitada.

E se por um lado a vaca, que com o bafo o confortava, por outro a sua mãe, que com as tetas o alimentava.

Frio não passava e fome, nada o indicava.

Tudo assim se passou, mas seu pai em nada reparou, ocupado que estava ao fundo do corredor, com a mercadoria vinda do seu fornecedor.

Aí, num laboratório mal-amanhado, Maldonado subtraía qualidades ao produto puro que encomendara, ao qual, e em proporção inversa, lucro adicionava, o mesmo de que necessitava, para uma vida mais desafogada.

Quem deixara de gostar de ver o produto a ir e a dívida a subir, foi um outro rei, mago na forma como dominava o mercado daquele pó que fazia sonhar, mesmo não havendo Natal para celebrar.

Cansado de esperar, e já muito perto de se exaltar, o mago Baltazar apelou à boa-fé dos seus três estarolas e mandou-os o seu caloteiro cliente visitar, levando ao seu anunciado filho algumas ofertas de pasmar, como prova de que a sua boa vontade não estava para durar.

Enquanto o ciclo se cumpria, Juvenal progredia, nada mal, pelo que se via.

Aos olhos de sua mãe ele crescia, que dele o pai ainda nem sequer sabia.

O burro zurrava, a vaca observava e entre tantas tetas, Juvenal lá se consolava.

Obstinados em seguir a estrela de que se falava, a que o nascimento de Juvenal anunciava, a bem ou a mal, os três estarolas lá deram com o curral.

Senhor cá de um cheiro, e bastante enlameado, este antecedia o celeiro, ainda em pior estado.

E foi o burro, que visivelmente alterado, desatou a zurrar desenfreado, anunciando as visitas, que haviam chegado.

De surpresa apanhado, no seu cantinho ocupado, Maldonado nem tempo teve, de prever o seu fado.

Pelas costas baleado, sem saber ler nem escrever, nem nunca ele veio a saber, o que raio lhe foi acontecer.

A mãe bem berrou, o burro zurrou, mas o interesse dos três era o miúdo, que naquela hora com eles voou.

Ali ela ficou, prostrada entre a vaca e o burro, que o outro, o seu marido, por estupidez quinou.

Foi-se o produto, foi-se o puto, foi-se tudo e ela de luto.

Quanto a Juvenal, cresceu forte, fez-se marginal, tudo por obra e graça de Baltazar, o maioral.

E por que a memória tem destas coisas, foi numa ceia de Natal que Juvenal se recordou de Maldonado, ali estendido, ensanguentado, e tomado de um instinto quase animal, se atirou a Baltazar para enfim o destronar.

Dos três estarolas nem um sobrou, tal a forma como lhes chegou, mas deles a custo ainda arrancou, uma certa morada aonde regressou.

Embora rijo e a quase tudo habituado, receoso era o seu estado ali chegado, pois o que iria encontrar, era coisa que nem podia imaginar.

Sua mãe nem o reconheceu e, com medo do que fosse, com a canos serrados o recebeu e quase o abateu.

Foi por pouco que a tragédia não se consumou, que a sua mãe não o eliminou, e tudo por culpa do burro, que zurrou, zurrou e a ela o denunciou.

- Filho meu, filho meu! Tanto tempo depois que foi que te aconteceu?

- Tornei-me homem, minha mãe, e o meu destino encontrei. E agora que aqui te sei, não conto regressar sem comigo te levar.

- Eu sabia que um dia, antes ainda de morrer, esta alegria eu teria, de te voltar a ver.

- E agora ter-te aqui, em carne e em osso, faz-me lembrar o que nunca esqueci, o que só me aumenta o remorso.

- Por isso, e antes que se faça mais tarde, é justo que saibas a verdade, agora que tens idade: Que o teu pai não era o Maldonado, mas aquele burro malvado.

- Eu sei que pequei e por isso vou pagar, mas antes que penses em regressar, será que não queres ao menos comigo jantar?

Era ceia de Natal e por isso nada lhes podia cair mal. Nem mesmo os bifes rijos que nem cornos que um dia vigorosos haviam trepado à sua mãe para lhe dar a possibilidade de ser alguém.

Comeram em silêncio, numa singela homenagem, para depois, ainda atordoado, Justino seguir viagem.

Fora demais a revelação, tanta coisa num só serão, não fosse ser Natal e aquela ceia teria tido outra conclusão.

Ainda se tentou a presenteá-la, pois era noite de festa, pensou até numa bala, bem no meio daquela testa.

Mas de que serviria, agora que a burrice estava feita, mudar nada iria e maior seria a desfeita.

À mãe nunca perdoou, tê-lo deixado assim tão amargurado, mas a verdade é que nunca mais zurrou, qual jumento amaldiçoado.

 

FIM

Nobel da Literatura 2013 para Alice Munro

por migalhas, em 10.10.13

 























Depois de no ano passado o Nobel da Literatura ter distinguido o chinês Mo Yan (2012), eis que em 2013 o galardão, no valor de oito milhões de coroas suecas (925 mil euros), coube à escritora canadiana, de 82 anos, Alice Munro. Definida pela Academia de Ciências Sueca como "mestre do conto contemporâneo", Munro recebe este prémio depois de anteriormente já ter sido distinguida com o Prémio PEN de Excelência, em 1997, o Man Booker International Prize, em 2009, e, por três vezes, com o Prémio Governador Geral do Canadá para Ficção. A sua prosa revela com ironia e seriedade, a um tempo, as ambiguidades da vida, colocando o fantástico ao lado do mundano, do dia a dia mais comum, que tem vindo a criar uma empatia crescente entre críticos e leitores.
Aqui ficam os livros da autora publicados em Portugal: "Amada Vida" (Relógio d'Água, 2013),"O Progresso do Amor" (Relógio d'Água, 2011), "O Amor de uma Boa Mulher" (Relógio d'Água, 2008), "Fugas" (Relógio d'Água, sem data) e "A Vista de Castel Rock" (Relógio d'Água, ainda sem data).