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TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

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Não me peçam para falar em público

por migalhas, em 29.08.24

Não me peçam para falar em público

Por favor, suplico-vos

A exposição faz-me mal

A ribalta não é para mim

 

Não se arrisquem

não se sujeitem, e a mim também

Ali exposto, a vós, aos mortos, aos espíritos dos antepassados

Entre a espada e essas quatro paredes que me comprimem o peito

Retalham a respiração, me toldam a visão

 

Se ainda se mutilassem

Todos vós os olhos arrancassem, os ouvidos perfurassem, a língua cortassem

As mãos, sim as mãos, que para tanto servem, decepassem

Se por igual se despissem, todos, nu integral, como ao mundo vieram

Se assim diminuídos a sala abandonassem, em romaria, como quem, afinal, não queria

assistir a esta porcaria!

 

Ainda assim evitaria

Não, recusaria!

Determinantemente! Uma e outra vez

 

Que em público mudo sou e já não mudo

Estou bem assim, como estou.

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira (2023)

É tempo, sabe-se lá de quê.

por migalhas, em 27.08.24

É tempo de sentirmos frio

            mas quem nos abraça é o calor!

É tempo de brilhar a chuva

            mas quem actua é o astro sol!

 

É tempo de dias cinzentos

de nuvens escuras, céu carregado

depressões, constipações

urgências à nora, por todo o lado

 

Mas o que se vê são esplanadas cheias

areais de gente feliz em fato de banho

esquece lá as botas e as meias

viva a vitamina B12, abaixo o ranho!

 

Acabou o tempo com rótulo

Já nada é o que deveria

Andamos ao sabor da maré

Nós, os responsáveis por esta anomalia

 

Assobiámos para o lado por tempo demasiado

Virámos as costas às evidências

Quisemos tudo sem olhar a meios

Resta-nos agora as consequências

 

Fizemos trinta por uma linha

Desrespeitámos a natureza

Deixámos o planeta feito num oito

Para vivermos hoje esta incerteza

 

Rezem agora, rezem

Que deus algum nos vai ajudar

Vestimos a pele do diabo

E é com ele que vamos acabar

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira (2023)

Ser vento

por migalhas, em 23.08.24

Afago o vento

Que por entre os dedos se esvai

Ser dócil enquanto brisa

Tumultuoso em vendavais

 

Vais onde, oh endiabrado!

Nesse teu rumo libertino

Obstinado, ritmo cadenciado

Dono e senhor do teu destino

 

Tu que não tens pernas, nem pés

Mas corres à velocidade que te apraz

De ponta a ponta, de lés a lés

Onde queres, vais

E a todos te dás

 

Tu que não te quedas por barreiras

Tu que personificas a liberdade

Tu que não conheces fronteiras

Nem tão pouco se te conhece a idade

 

Moderado, és forte, és vendaval

És como mais nada, assim igual

És fúria rebelde em movimento

És tudo em todo o lado ao mesmo tempo

 

És tu a ser vento                                            

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira (2023)

mulher com filhos

por migalhas, em 21.08.24

mal tem filhos, a mulher desliga o vínculo de intimidade que até então mantinha com o seu companheiro

como se dele esperasse apenas a continuidade sua em forma de criança e nela se visse e passasse a integrar em permanência

quanto ao homem, resta-lhe a esperança de dias em que ela sobre ele relembre o antigo desejo e nele ainda veja quem capaz de lho saciar

que depois segue-se a terceira idade e daí para diante o que era mendigues, moribundo se torna de vez

então já na mão de netos e bisnetos, da prole que do sexo se perfez e que, involuntariamente, o aniquilou de vez.

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira (2014)

O restaurador

por migalhas, em 19.08.24

“O que é natural e fica bem é cada um usar o cabelo com que nasceu”. Passava em pescadinha, naquela velha televisão. Um anúncio, também ele com alguma idade, sobre um restaurador capilar que, nas palavras do locutor, usado diariamente dava ao cabelo a sua cor primitiva. A humidade daquela mal iluminada cave não permitia que o odor pestilento se desvanecesse. Agrilhoados às paredes, quase lado a lado, múltiplos corpos em putrefação testemunhavam a publicidade enganosa daquele elixir capilar. Qual cor primitiva, se nem o cabelo lhes sustinha nas cabeças. Dezenas de embalagens vazias jaziam pelo chão imundo. O passar dos anos havia-as deteriorado e, numa combinação de todo improvável, transformado num ácido altamente corrosivo. Ele bem tentou provar que a promessa se mantinha válida. Mas a morte do produto haveria de levar a tantas outras. Fechou a pesada porta metálica com estrondo e saiu à rua. A luz do dia feriu-lhe a vista. Inspirou fundo e, frustrado, avançou pelo passeio deserto.

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira (2024)

Dia do Autor Português

por migalhas, em 22.05.24

Confronto-me com aquele ser na cruz e partilho da sua dor. Também eu fui brindado em vida com uma pesada cruz que arrastei a cada dia da minha existência e que tem sido presságio da minha morte anunciada. Também eu fui flagelado e milhentas chagas se me abriram em rios de sangue que verti em direcção ao imenso mar onde me vejo submergir a cada espaço de tempo. Não deveria haver permissão para tamanho sofrimento. À flor da pele ou profundo como o abismo em que nos deixamos cair, atraídos pela tentação, pela vida de ficção com que julgamos iludir a realidade. E esta não é a minha realidade. Fechado entre quatro paredes de um quarto nu, de tudo despojado. Agradeço a dádiva, a esperança em mim depositada, a ajuda que me foi dada sem nada exigir em troca senão a minha redenção, a minha abnegação à vida de pecado a que me submeti e que tem impregnado os meus dias. Lamento desapontá-los guardiões da fé, da crença num poder do além, mas essa promessa jamais a poderia cumprir. Pois não é esta a minha realidade. Sou animal selvagem e não admito cativeiro algum. Ninguém nem nada me priva da liberdade que me percorre as veias, que me permite respirar. Nem que isso signifique a morte. Pois também ela é libertação. A suprema libertação.

 

Excerto do projecto "Crónicas de Serathor", de Miguel Santos Teixeira.

roncos, grunhidos

por migalhas, em 15.05.24

roncos, grunhidos

uivos sumidos

na terra, no céu

são sons distorcidos

em pele de lobo

ou só com um véu

são seres desconhecidos

que não se quedam por ninguém

são roncos, são grunhidos

são a voz do desdém

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira

o que é e o que devia ser

por migalhas, em 13.05.24

É assim, mas não devia.

Fazes assim, mas não devias.

Sabes o como e o porquê

e ainda assim não é isso o que se vê.

 

Ages à revelia do teu ser

és o oposto do que pensas e sabes

que tu assim não és são

nem te julgues a salvo.

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira

pai nosso

por migalhas, em 09.05.24

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A revolução

por migalhas, em 24.04.24

De quem vieram as ordens para avançar com a revolução?

Pouco se sabe.

Mas pressões de um insatisfeito grupo de militares, podem ter despoletado o processo.

Queriam a mudança, o corte com a ditadura, mas sem derramamento de sangue.

Para mostrarem ao mundo que era possível cortar sem fazer feridas.

O pai, militar orgulhoso de ter integrado a bem-sucedida operação, mostrou ao filho a metralhadora.

A G3, com o cravo cravado no cano a travar a saída de uma munição que fosse.

O filho, sem perceber o que se passava, mas visivelmente contagiado pelo entusiasmo do pai, pegou no cravo e cheirou-o.

O pai baixou a guarda e agora o cravo já nada podia deter.

Nem mesmo a bala, que, fatalmente, o atingiu pelas costas.

Lá fora, a celebração subia de tom.

Já no chão desta casa, um outro tom, este vermelho sangue, desabrochava.

Inocente, a criança olhou o pai inerte, o soldado tombado.

Era dia de festa.

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira