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TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

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O restaurador

por migalhas, em 19.08.24

“O que é natural e fica bem é cada um usar o cabelo com que nasceu”. Passava em pescadinha, naquela velha televisão. Um anúncio, também ele com alguma idade, sobre um restaurador capilar que, nas palavras do locutor, usado diariamente dava ao cabelo a sua cor primitiva. A humidade daquela mal iluminada cave não permitia que o odor pestilento se desvanecesse. Agrilhoados às paredes, quase lado a lado, múltiplos corpos em putrefação testemunhavam a publicidade enganosa daquele elixir capilar. Qual cor primitiva, se nem o cabelo lhes sustinha nas cabeças. Dezenas de embalagens vazias jaziam pelo chão imundo. O passar dos anos havia-as deteriorado e, numa combinação de todo improvável, transformado num ácido altamente corrosivo. Ele bem tentou provar que a promessa se mantinha válida. Mas a morte do produto haveria de levar a tantas outras. Fechou a pesada porta metálica com estrondo e saiu à rua. A luz do dia feriu-lhe a vista. Inspirou fundo e, frustrado, avançou pelo passeio deserto.

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira (2024)

A queda

por migalhas, em 15.08.24

O estrondo foi evidente. Os olhares seguiram-no. Houve sobressaltos, os típicos sustos. Crianças pequenas correram assustadas na direção dos pais. Boquiabertas, algumas pessoas retraíram-se. Ninguém se mostrou indiferente ao alvoroço provocado. Na loja, a empregada prontamente pegou no frágil manequim e ergueu-o do chão. Colocou-o de volta à posição de sempre, a vertical. Com ele, erguera-se igualmente a dignidade momentaneamente perdida. Recompostas, as pessoas seguiram os seus destinos. Aquele incidente era já passado. A vida apelava à normalidade, ao regresso urgente desta e a esta. O manequim ali continuaria a sua missão. Vestido, despido, mas sempre em pé. De preferência.

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira - Agosto 2024

Devolutos

por migalhas, em 29.05.24

Devolutos

estes meus sentimentos

janelas cerradas, já sem nada

nem portadas

o mundo por um fio

a luz, essa matriarca

agora finada

já sem nada

devoluta também

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira

A que sabe a noite

por migalhas, em 24.05.24

Essa noite eu já vivi.

Essa noite eu já conheci.

Essa noite foi a primeira noite com que me deparei depois de ti.

Perdido e sem rumo, nela entrei e nela me perdi, a pensar apenas e só em ti. Por isso essa noite sabe a ti, sabe de ti e não me deixa mentir quando digo que chorei ao te ver partir.

Depois dessa, muitas outras noites eu já vivi, perdido e sem rumo, desolado por não mais te ter a meu lado, de coração destroçado, alma escura como este breu que depois se fez em dia também, desde então.

Como um denso nevoeiro, a minha visão tolda-se sem nada a que se agarrar e por isso aguardo o teu regresso para então esta escuridão se dissipar e de novo à luz do dia poder voltar.

Sem receios de que de novo possa amar e nesse imenso mar de tantas ilusões, sentimentos e outras sensações, me seja outra vez permitido sonhar, com noites de luar e dias, enfim, brilhantes, nos quais dois amantes se banhem de luz sem que isso seja a sua cruz, mas antes a sua sorte em vida, a de alguém que encontra o seu par e nele se acolhe e conforta, nele encontra guarida.

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira

Dia do Autor Português

por migalhas, em 22.05.24

Confronto-me com aquele ser na cruz e partilho da sua dor. Também eu fui brindado em vida com uma pesada cruz que arrastei a cada dia da minha existência e que tem sido presságio da minha morte anunciada. Também eu fui flagelado e milhentas chagas se me abriram em rios de sangue que verti em direcção ao imenso mar onde me vejo submergir a cada espaço de tempo. Não deveria haver permissão para tamanho sofrimento. À flor da pele ou profundo como o abismo em que nos deixamos cair, atraídos pela tentação, pela vida de ficção com que julgamos iludir a realidade. E esta não é a minha realidade. Fechado entre quatro paredes de um quarto nu, de tudo despojado. Agradeço a dádiva, a esperança em mim depositada, a ajuda que me foi dada sem nada exigir em troca senão a minha redenção, a minha abnegação à vida de pecado a que me submeti e que tem impregnado os meus dias. Lamento desapontá-los guardiões da fé, da crença num poder do além, mas essa promessa jamais a poderia cumprir. Pois não é esta a minha realidade. Sou animal selvagem e não admito cativeiro algum. Ninguém nem nada me priva da liberdade que me percorre as veias, que me permite respirar. Nem que isso signifique a morte. Pois também ela é libertação. A suprema libertação.

 

Excerto do projecto "Crónicas de Serathor", de Miguel Santos Teixeira.

amanhece

por migalhas, em 17.05.24

anoitece, amanhece

e de premeio o mar

onde tudo acontece

qual espelho que tudo reflete

uma imagem, uma prece

na medonha força que cresce

e das bravas vagas emerge

e embrutece

até que saciada esmorece

ao som das ninfas

do cântico que adormece

e prepara a hora, que anoitece

para novo dia, que amanhece

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira

roncos, grunhidos

por migalhas, em 15.05.24

roncos, grunhidos

uivos sumidos

na terra, no céu

são sons distorcidos

em pele de lobo

ou só com um véu

são seres desconhecidos

que não se quedam por ninguém

são roncos, são grunhidos

são a voz do desdém

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira

o que é e o que devia ser

por migalhas, em 13.05.24

É assim, mas não devia.

Fazes assim, mas não devias.

Sabes o como e o porquê

e ainda assim não é isso o que se vê.

 

Ages à revelia do teu ser

és o oposto do que pensas e sabes

que tu assim não és são

nem te julgues a salvo.

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira

Liberdade

por migalhas, em 25.04.24

Nela ouso pensar

de sorriso no rosto de quem sabe que quer

ou se permite poder.

 

Com ela me quero deitar

nela me quero depositar

por entre juras e promessas

de dias ao sol, noites ao luar.

 

Parida de um cravo foi, espinho de rosa é.

 

Fez a cama, onde me deitei

deu-me a mão, que aceitei

enfeitiçou-me, e eu deixei.

 

Iludido, apaixonado

fez-me sonhar acordado,

quando o tempo todo assim vivi

apenas e só, enganado.

 

Não lhe vi a outra face

o âmago que é o seu

erro meu, meu enterro

que nela quis acreditar

 

Liberdade, Liberdade

que já nada tens para me dar

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira

A revolução

por migalhas, em 24.04.24

De quem vieram as ordens para avançar com a revolução?

Pouco se sabe.

Mas pressões de um insatisfeito grupo de militares, podem ter despoletado o processo.

Queriam a mudança, o corte com a ditadura, mas sem derramamento de sangue.

Para mostrarem ao mundo que era possível cortar sem fazer feridas.

O pai, militar orgulhoso de ter integrado a bem-sucedida operação, mostrou ao filho a metralhadora.

A G3, com o cravo cravado no cano a travar a saída de uma munição que fosse.

O filho, sem perceber o que se passava, mas visivelmente contagiado pelo entusiasmo do pai, pegou no cravo e cheirou-o.

O pai baixou a guarda e agora o cravo já nada podia deter.

Nem mesmo a bala, que, fatalmente, o atingiu pelas costas.

Lá fora, a celebração subia de tom.

Já no chão desta casa, um outro tom, este vermelho sangue, desabrochava.

Inocente, a criança olhou o pai inerte, o soldado tombado.

Era dia de festa.

 

© Copyright Miguel Santos Teixeira