por migalhas, em 12.02.24
Ao retardador
As folhas da vida assim avançam, embaladas pela brisa de final de tarde
Duas adiante, uma de quando em vez atrás a recuperar memórias quase perdidas
Sobre um pequeno banco, estrutura de madeira, assento de vide
Um breve e merecido repouso
Um recuo ao que foi
Em tempos que não voltam mais
Senão numa folha que volta atrás
A recuperar o que não quer ver esquecido
No curso inverso do tempo
Força em contramão
Num leito de águas revoltas
Fugaz deleite pousado naquele dente de leão
Que segue por que empurrado
Ele adiante, até que travado
No seu voar encantado
Qual vida que segue perplexa a reboque do tempo
E nele se materializa
Nele se realiza
Nele se avista ao longe
E um dia se precipita num regresso que jamais
Tarde demais
Tudo esquecido
Perdido
Ao retardador
Até que o fim
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2013)
por migalhas, em 02.01.24
acabo de morrer
deixei de olhar, de ver
o meu pénis entesa-se na perspectiva de me sobreviver
é dor, é prazer
num duelo de forças que não permite saber
quem sobrevive, quem no fim irá perecer
pesado ficou o ar
assim a terra, fogo e mar
deposta a derradeira vontade
num augúrio de imparável mortandade
coisa cortante, matéria nefasta
que a todos arrasta
a todos dilacera, nunca pela metade
sem credo ou idade
qual canto do cisne
capítulo final
assunto encerrado
pena capital
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2013)
por migalhas, em 29.12.23
desespero
pelo que não vejo, pelo que não sinto
desespero
por esta névoa que tudo me oculta
me cala a voz e a visão impede
desespero
porque não te entendo, nem quero
porque vivo surdo e mudo e nunca acordado
porque não sinto outro estado que este de viver amarrado
mãos, pés, pensamentos
tantos os tormentos
que em mim habitam enclausurados
desespero
pelo que não se vê, não se sente
mas oprime, asfixia
subtrai vida a nascente, vida subtrai a poente
na maré cheia, na maré vazia
sem tréguas ou misericordiosa compaixão
desde a tenra hora, à hora de me unir a este chão
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2013)
por migalhas, em 27.12.23
Acordei e morri.
Nem um suspiro, um sussurro e faleci.
Um instante, uma efémera memória, foi tudo o que ficou de mim.
E a terra húmida a cobrir-me o corpo nu.
A ver-te partir, vida que nem vivi.
Olhos raiados, cegos, surdos e mudos de tudo aquilo que nunca vi.
Ali especados, incrédulos, a olharem o mundo como só eu o vi.
Que carrego tão leve é este, que nem o senti?
Foi por viver breve?
Que nada, nem ninguém.
Apenas o diabo que me leve.
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2013)
por migalhas, em 30.11.23
por quantos infernos já passei?
enclausurado ao mundo empírico e por ele ignorado
dele repelido como um escravo a que nada é permitido
nesta vida que nos cobra cada registo falhado
em papel timbrado, em folhas repassadas e com elas a história
o tempo que se escoa e eu com ele
de tudo afastado e neste estado omitido
que o nada se interpõe e de mim faz troça
ao que faço faz vista grossa
e cínico no ar espalha a mentira
que repetida aos sete ventos se torna verdade
maior a crueldade
para quem se queria parcela deste mundo
mas nele perdeu quanto tinha
a fé, a esperança, a identidade
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2013)
por migalhas, em 28.11.23
há uma ideia da morte
feita apenas em vida
de que ela nos é devida
como coisa merecida
no fim desta corrida
que um dia nos foi oferecida
como a mão da noiva comprometida
a que juramos fidelidade indefinida
como indefinida é a vida
e essa morte prometida
como cada passo que nos conduz
de um extremo ao outro desta linha em que avançamos
rumo à luz
que, por fim, alcançamos
às cegas, é certo
que nada é o que julgamos
de identidade indefinida
o que faz, faz sem maldade
como coisa merecida por esta vida oferecida
que não escolhe idade
ou tempo de validade
agora e na hora da nossa
seja feita a sua vontade
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2013)
por migalhas, em 24.11.23
De cada dia existe uma parcela que me escapa
Um par de horas
(quase sempre mais, dois pares, talvez até três)
que me são omissas, que em permanência não lhes chego sequer a sentir o sabor
São horas que passam na minha ausência, mas que contam tanto como as outras no acumular de todas as que um dia se me irão somar
Horas que se adicionam às de uma vida, mas que as não vejo ou sinto como horas
São quase sempre horas nocturnas, horas adormecidas em que também eu me embalo rumo ao paralelo mundo dos sonhos
Nessas horas é o silêncio quem ergue a sua voz e do alto da sua solenidade acrescenta tempo ao tempo que me perfaz
E quando acordo
(na manhã seguinte a essas horas que nem as vivi, sequer senti, apenas se perfizeram porque são essas as suas ordens)
sou eu mais essas horas por companhia, por sombra que me segue e acompanha e acrescenta camadas de tempo ao tempo que já somei, bem cimentadas na pessoa que sou e de que só as rugas e toda a degradação deste meu ser
(que são consequência sua)
me fazem saber que passaram por mim
(também elas passaram por mim)
mesmo sem lhes ter chegado a sentir o sabor
um leve trago desse existir amargo
que me soma tempo sem permissão
que me acelera o passo para o outro lado
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2013)
por migalhas, em 22.11.23
e o eléctrico?
ao longo do corredor de carris em ferro
fazendo deslizar o todo das almas
e nesse percurso escoando quantas memórias jamais perdidas
a espaços eternizadas no momento
naquele momento vidrado de quem olha pelo espaço que se retrata na paisagem e por ele deambula
encantado
tão encantado quanto tudo o que é vida e movimento que se perpétua na raiz de quanto ainda está para ser
em breve futuro feito presente
presente feito passado.
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2013)
por migalhas, em 21.11.23
ensaio
por migalhas, em 20.11.23
são parcelas de um tempo que se esvai
num tom particular, comum a todos
que um só olhar nunca diz tudo
nem voz alguma perdura, sequer se instala
como uma lenda ou mito ambíguo
que de concreto nada fala
num espaço que se crê contínuo
confinado a esta pequena mala
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2013)