que me são omissas, que em permanência não lhes chego sequer a sentir o sabor
São horas que passam na minha ausência, mas que contam tanto como as outras no acumular de todas as que um dia se me irão somar
Horas que se adicionam às de uma vida, mas que as não vejo ou sinto como horas
São quase sempre horas nocturnas, horas adormecidas em que também eu me embalo rumo ao paralelo mundo dos sonhos
Nessas horas é o silêncio quem ergue a sua voz e do alto da sua solenidade acrescenta tempo ao tempo que me perfaz
E quando acordo
(na manhã seguinte a essas horas que nem as vivi, sequer senti, apenas se perfizeram porque são essas as suas ordens)
sou eu mais essas horas por companhia, por sombra que me segue e acompanha e acrescenta camadas de tempo ao tempo que já somei, bem cimentadas na pessoa que sou e de que só as rugas e toda a degradação deste meu ser
Do nada, a campainha toca. Desloco-me ao vídeo porteiro, olho o écran e vejo que é o carteiro. Abro-lhe a porta e ele sobe de elevador ao meu andar. Espero-o à entrada do meu apartamento. Trocamos galhardetes, ele fica com o meu primeiro e último nome e eu com a encomenda que esperava ansiosamente. Despedimo-nos e confirmo que chegou a minha Smart Home Camera. Awesome! A leitura das instruções é rápida, pois é simples, hoje em dia, colocar a trabalhar um dispositivo destes. É pequena, portátil, leve como uma pena, 220 gramas, incrível! Encomendei-a para poder ver o gato, enquanto estou fora. Vamos a isso! É só ligar à corrente e imediatamente acende uma luz vermelha. Está on. Tem uma visão de 360º, vou ter tudo debaixo de olho. Descarrego e instalo a app que a vai controlar à distância e mostrar-me no telemóvel cada movimento do Simão. Sim, por que também tem detector de movimento. Coloco a câmara no spot que melhor cobre a área que pretendo captar e lá estou eu, ali ao fundo, a mexer no telemóvel. Daqui, do telemóvel, vejo-me ali, captado pela câmara. Aceno para a câmara e sinto-me duplicado. Experimento o comando que permite a rotação da câmara. Perfaz na perfeição o que promete, 360º. Vou ter mesmo tudo debaixo de olho. Volto à posição inicial e lá estou eu de novo, no mesmíssimo lugar, a olhar o telemóvel. É estranho, ver-me ali, daqui. E mais estranho ainda, estar a acenar de novo. Mas não eu aqui, aquele eu ali. Sem tirar os olhos do telemóvel, aquele eu ali, no écran do meu telemóvel, acena-me, lá ao fundo. Faço um zoom com os dedos indicador e polegar e sou mesmo eu, não há dúvida. Pode ter sido a imagem que congelou ou que a câmara tenha gravado. Continua a acenar-me, sem desviar os olhos do telemóvel. Eu olho directamente para a câmara, lá ao fundo, que, supostamente, está a gravar-me. Volto a olhar o telemóvel e agora eu saí de cena. Já não estou a olhar o telemóvel e a gerir os comandos da app. O telemóvel cai no chão. No écran, repousa aquilo que a câmara estava a captar. Atraído pelo som, o Simão aparece, vindo lá do quarto, e mia. Cheira o telemóvel e eu posso vê-lo, o enorme focinho encostado à câmara. O telemóvel hiberna, o écran faz-se negro e eu, desapareço para sempre.
Isolados naquela remota cabana de montanha, pai e filha desfrutam de um tempo de calma e sossego, só ali possível.
Lá fora, anoitece ao ritmo de uma suave brisa.
Lá dentro, reina o silêncio. Apenas interrompido pelo abrir de uma porta.
Na sala, trabalhando no seu último livro, o pai é surpreendido pela presença da filha. Esta olha-o de cima, enterrado no sofá, para lhe dizer:
- Pai, a porta do meu quarto abriu-se de repente. E já não é a primeira vez que acontece.
O pai, fixando-lhe os olhos, responde-lhe:
- Estou a ver que não te contaram a lenda que por aí corre sobre esta cabana.
- Lenda?
- Sim, dizem que é habitada por estranhos seres que assumem a figura de pessoas que nos são conhecidas.
- Conhecidas? Como assim?
- Por exemplo, no nosso caso, poderiam fazer-se passar por mim, teu pai.
A filha mais não disse.
O seu breve grito desesperado ecoou pela sombria montanha, rapidamente consumido por esta. Uma súbita rajada de vento varreu as frondosas copas das árvores, como numa dança de celebração. E o silêncio voltou a abater-se sobre a cabana. De novo esventrada de outros seres que não aqueles que, por diversão, se alimentam das incautas pessoas que ali vão à procura de calma e sossego.