Farsa de capa
por migalhas, em 24.04.07
Hoje, 23 de Abril, Dia Mundial do Livro, deveria ser um dia especial. E digo deveria, por que já um dia vi editada uma obra minha em formato de livro. Viu-o nascer, ganhar forma, crescer e tornar-se veículo do meu imaginário junto dos que dele tivessem curiosidade. Algo que deveria ser mais do que suficiente para me fazer sentir orgulhoso. Por que dei vida a um livro, dos milhões que já viram a luz do dia. Não fossem estes focos de distracção sempre tão apetecível, de magia na sua forma mais pura, de encantamento que nos leva para bem longe e nos transporta para fora do que somos, do que vivemos, e nada faria sentido. De que outra forma nos seria possível espreitar realidades que não são as nossas, de experimentar vivências que nunca vivemos, de atravessar mundos longínquos ou que nem sequer concebíamos, senão por entre páginas tomadas pela imaginação criativa de quem um dia se propôs a mostrar o que lhe vai na alma. Um livro é uma vida. Num livro nascemos, crescemos, vivemos e morremos. No seguinte ressuscitamos e retomamos o ciclo. Num encadeado que perfaz muitas vidas, nesta que é a nossa. Viver sem livros, sem o que cada um conta, à sua maneira, ao seu estilo, seria como viver adormecido, num sono profundo e sem sonhos. Era obstruir uma existência paralela, ficcionada, que nos dá ânimo e motiva para o longo caminho real que percorremos. Que seria de todos nós sem as páginas que percorremos ávidos, desejosos de atingir o derradeiro clímax naquela última linha que nos deixa em suspenso, em delírio, de lágrima que hesita em soltar-se ou apenas a pensar no que poderá estar para além do que ali se lê. Por tudo isto, este dia tinha tudo para ser especial. Não fosse o entusiasmo que nele se respira esmorecer passadas estas 24 horas. Amanhã bem cedo, tudo não passará de vãs memórias. Tudo voltará à estaca zero, tudo se voltará a ignorar, a desprezar, como se este movimento cultural por excelência, que é a literatura, fosse apenas privilégio de uns quantos, de uma pequena parcela de colunáveis, sempre os mesmos. Falo em nome pessoal e dos que batalham para que o universo nacional se revele pela mão dos novos talentos, que os há, mas em que ninguém parece acreditar ou apostar. E se por instantes existe a sensação de que alguém parece interessado neste ou naquele projecto, depressa se esvai essa esperança. Pois que de imediato se revela o espírito do lucro, do negócio, do aproveitamento sem escrúpulos por parte de quem possui faca e queijo na mão. Por parte dos outros, dos que criam e fornecem o enredo, a história não chega sequer a sê-lo. Surgem breves, respiram e tal e qual borboletas pairando num voo inocente, depressa se vão, deixando apenas um breve rasto do que foram, nunca uma certeza do que poderiam ter sido. Por tudo isto hoje é também um dia de hipocrisia, de falsidade, de desrespeito por quem sabe o que é escrever, o que custa e se lhe dedica de corpo e alma, acabando por perecer sem nunca lhe chegarem a reconhecer quaisquer méritos. Hoje é o Dia Mundial do Livro. E para mim, bem como para muitos outros como eu que fazem da escrita motivo de vida, mais não passa de um dia para esquecer, pois faz-nos lembrar que existimos, mas ninguém (ou quase ninguém) nos lê. E não é ficção, é a mais pura e dura das realidades. Pois de que serve o que temos para dizer, se ninguém (ou quase ninguém) se mostra minimamente interessado em ouvir?