De nada nos serve
Por que vivemos nós em função da morte? Do seu manto negro que mesmo num dia de sol resplandecente se esconde à espreita? Talvez por isso seja verdade afirmar que, no que diz respeito à vida, a morte é a parte mais fácil. O capítulo mais provável de acontecer, senão hoje, amanhã ou depois. Mas como uma certeza absoluta, a única que temos em definitivo em vida. Seja aqui, em Lisboa, em Londres, em Pequim ou do outro lado do Atlântico, em qualquer canto do mundo o epílogo é sempre igual. Um fim anunciado desde o primeiro segundo de vida, desde a primeira golfada de ar, desde o milésimo de segundo em que me torno físico, existência confirmada, visível aos olhos do mundo, logo inicio o caminho rumo à morte. Como a única luz que ao fundo de um túnel de breu encharcado se me depara real, passadas as agruras da vida que, entretanto e sem aviso prévio, se intrometeu entre nós. É assim desde sempre. Uma caminhada amarga, um calvário que nos domina e se estende até ao derradeiro fôlego, aquele que antecede a partida mais temida. Algum dia terá de acontecer, sem dúvida, mas por que a receamos tanto? Por que condiciona ela cada passo que damos? Por que nos verga a existência, limitando-a ao tempo que nos concede como um favor especial cujo preço a pagar é tão demasiadamente caro? Apenas por breves instantes, aqueles em que nos ausentamos de pensar com clareza, nos é dado o prazer de saborear, embora que ao de leve, o requintado gosto do que seria viver sem a sua omnipresença, sem a sua sombra constante sempre fundida na nossa. Que poderes lhe foram, afinal, conferidos, e por quem, para possuir semelhante autoridade? Julgar quem deve ir e quando, a seu belo prazer. Rei e Senhor, naquele seu tom prepotente de quem sabe possuir faca e queijo na mão. De quem sabe ser sua a última palavra e a dos que condena a cada minuto que passa, sem piedade ou ponta de misericórdia. A gadanha é a sua arma, que, temida, resgata almas para o seu mundo, delas se servindo para decoração do seu espaço sombrio, carregado de humidade fria que se impregna nos ossos, na carne mutilada, corroída pela dor de quem não teve direito a bilhete de volta. Encará-la é vergar-se ao seu peso. Enfrentá-la nunca deu outro resultado que não a justificação da sua supremacia. Desde a aurora dos tempos que é ela que nos comanda a vida. Como num jogo macabro em que somos apenas e só as peças de que se serve para dar corpo à sua estratégia doentia. De nada nos serve reclamar. A quem, pergunto-me. Se ninguém nos pode valer. De nada, de nada.