Déjà vu
por migalhas, em 28.12.06
O tempo não estava do mais convidativo para sair. Mas eu precisava mesmo de abandonar aquele ambiente. Abandonar aquele isolamento a que me entregara, nem que fosse por umas horas. Vesti o sobretudo, coloquei um cachecol que me agasalhou o pescoço e saí decidido. Começaria por regressar à pastelaria da esquina, onde tantas e tantas vezes tomara um reconfortável café ou chocolate bem quente na companhia dela. Iria agora enfrentar o meu primeiro fantasma. Conseguiria superar este primeiro, e quiçá dos mais dolorosos, desafios? Não vacilei e entrei. Talvez devido à chuva que se adivinhava, muitas eram as pessoas que, como eu, haviam optado por aquele local acolhedor. Casais, muitos casais, alguns com crianças pequenas, outros apenas em evidente início de relação. Não era o cenário ideal para a esquecer, longe disso. Mas eu tinha de contrariar esta minha obsessão, tentar superar o que era já parte do passado. Pedi um café e fiquei a admirar a felicidade de cada um ali presente. Claramente contrastante com a minha tristeza, o vazio que agora me preenchia na sua ausência, como se me tivesse sido subtraída parte do meu ser. As trocas de olhares cúmplices, os sorrisos, cada tique de uma vida em comum. Tudo me recordava ela. Sem delongas, bebi o café de um trago, paguei e abandonei aquela primeira provação. Talvez passeando pela rua, admirando as iluminações recentes de Natal, encontrasse a distracção de que necessitava para amainar o meu estado de espírito e combater a inércia face à vida que, entretanto, se instalara sem convite prévio. As lojas mostravam um apreciável corrupio de clientes e uma vez mais casais, muitos casais, alguns com crianças pequenas, outros apenas em evidente início de relação, faziam as suas compras. Dei por mim, minutos decorridos, hipnotizado pelos seus movimentos, os seus gestos, a sua felicidade. A chuva começara a cair e dela nem me apercebera. Se calhar por que não era a chuva ainda, mas algumas lágrimas avulso que me escorriam pelo rosto, fazendo-me recuar até onde eu não queria. Tudo me lembrava ela. Estaria destinado a viver o resto dos meus dias na angústia da sua ausência? Fugi dali e deixei-me ir até ao parque. Sentei-me num dos inúmeros bancos vazios e, uma vez mais, dediquei-me a assistir ao que ali se passava. Os fantasmas seguiam-me pois, como pude constatar, em breve estava a apreciar a perícia de uns e a falta de jeito de outros que, naquele pequeno lago gelado, exteriorizavam o seu gosto pela patinagem. E para que nada fosse realmente diferente, eram principalmente casais que se exibiam ou auxiliavam mutuamente, num carrossel de movimentos e ritmos que davam um toque especial àquele espaço, agora quase branco na sua totalidade, resultado do nevão que, na véspera, se havia feito sentir. Concluí que não havia escapatória. A catarse a que teria de me sujeitar, haveria sempre de contemplar este tipo de visões dolorosas e só conseguindo voltar a conviver com elas poderia considerar-me exorcizado em definitivo. Regressei a casa e ao abrir a porta fui recebido pelo seu abraço apertado, quente, saudoso. Um déjà vu recorrente que desde a sua partida me perseguia como uma partida que, sendo de mau gosto, me consolava e animava naqueles efémeros instantes. Despiu-me o sobretudo e juntando a sua mão à minha, encaminhou-me para o quarto, para aquela que fora a nossa cama. Atirou-me deliberadamente para cima do colchão e saltou-me para cima, enlaçando-me e cobrindo-me de beijos e carícias que subiram de tom, até nos tornarmos apenas um. Ao acordar, reparei que acontecera uma outra vez. A meu lado, inalterável, repousava a almofada que fora a dela, durante o tempo que fora minha. Aconcheguei o edredão junto ao pescoço e ali fiquei a olhar a chuva que, agora sim, começara a cair lá fora.