O prédio que não queria crescer
por migalhas, em 21.12.04
Aquela fieira de prédios altos e majestosos, quase todos a tocarem os céus, só destoava de todas as outras fieiras de prédios igualmente altos e majestosos por uma pequena razão. Quase imperceptível no meio dos seus irmãos muito mais altos, um pequeno prédio de apenas dois andares havia resistido à tentação de crescer. De acompanhar os seus pares naquela louca e desenfreada corrida às alturas. Mantivera a sua baixa estatura - equivalente aos seus dois únicos pisos - numa pose quase insignificante face aos seus vizinhos gigantes. Insignificante, mas assumida desde a primeira hora. De tal forma se mantivera fiel a esta sua ideia - suportada por uma intransigente teimosia - que já ninguém sequer ousava mencionar o facto. Passara a ser natural para todos os outros, coabitar com uma "amostra de prédio" como ainda lhe chegaram a chamar. Designações a que não deu qualquer importância, convencido que estava dos seus propósitos. Nada o demovera antes da mesma forma que nada o iria demover agora. Passados os piores momentos - aqueles iniciais em que a sua teimosia muitas discussões gerou - todos viviam agora em harmonia perfeita e plenamente convictos de que assim seria para sempre. Havia no entanto um prédio, a alguns quarteirões de distância, que ainda hoje não se conformava com esta situação, a seu ver, ridícula. Por que razão aquele prédio se recusara a acompanhar o crescimento dos demais? Que ideia estaria na base daquela tão insólita decisão? Não querendo dar parte fraca - mas remoendo aquele assunto todos os dias, durante anos a fio - o inconformado prédio de duzentos e trinta e três andares lá se decidiu a questionar o parente que ele próprio considerava muito afastado. - Ouve lá. Tu, ó pequenote.
- Estás a falar comigo?
- Claro que estou a falar contigo. Vês aqui mais algum prédio a que possa chamar pequenote? - perguntava o enorme arranha-céus, agora todo encurvado como única forma de se chegar mais perto.
- Não gosto que me chamem nomes associados ao meu tamanho.
- Tudo bem, é justo. Não volto a fazê-lo. Mas há uma coisa que me tem dado a volta à telha e que gostava de esclarecer contigo.
- Muito bem, fala.
- Tem a ver com a tua altura.
- E o que é que tem a minha altura? - questionou em resposta, preparando-se para argumentar o que tantas vezes já repetira a outros curiosos como ele.
- É que é muito baixa.
- Pois é. E isso incomoda-te?
- Não, não me incomoda. Mas faz-me confusão.
- Faz-te confusão?
- Sim, faz-me confusão porque é que tu não queres ser alto como todos nós. Tu nunca tocaste os céus, nunca experimentaste a sensação única que é ver tudo lá de cima. É uma vista espantosa que tu aqui de baixo nem imaginas.
- Mas quem é que te disse a ti que a vista que tenho aqui de baixo não é tanto ou mesmo mais espantosa do que a que tu tens lá de cima?
- Essa agora! Como é que é isso possível?
- Eu digo-te. Vocês cresceram, uns mais do que os outros, mas sempre com o objectivo de se afastarem cá de baixo. Tornaram-se altivos, frios, distantes e convencidos de que a vossa estatura era o que mais interessava. Mas enganam-se. Todos. O melhor da cidade está aqui em baixo, nas ruas. O melhor da cidade são as pessoas e elas movem-se aqui, a dois passos de mim. Passeiam, correm, zangam-se, convivem, riem, choram, falam, tudo aqui, bem pertinho de mim. Sente-se o calor humano cá em baixo. E isso sim, é o que verdadeiramente importa. Por um acaso vocês lá de cima têm essa visão?
- Das pessoas? Não... lá de cima elas são minúsculas. Quase tanto como tu.
- Percebes agora porque é que eu nunca quis crescer como todos vocês?
- Acho que sim.
- Como é que eu assistia a todo este espectáculo humano, a toda esta vida que pulsa a cada segundo na cidade, se estivesse lá no alto?
- Tens razão. Nunca tinha pensado nisso. Obrigado por me teres feito ver essa tua visão.
E com este esclarecimento, o alto e majestoso prédio de muitos e muitos andares regressou à sua posição vertical, compreendendo agora as razões que haviam levado aquele pequeno prédio a recusar-se a crescer. A recusar-se a ser mais um arranha-céus vaidoso e apenas preocupado em tocar o céu, esquecendo que o mais importante, e única razão da sua existência, vive cá em baixo, com os pés bem assentes na terra.