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TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

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O Natal do velho amolador

por migalhas, em 22.12.04
Amolador há 42 anos, Fulgêncio visitava com frequência a pequena aldeia onde ainda possuía alguns, poucos, clientes. Os tempos eram outros e estes bem mais difíceis para uma profissão que caminhava a passos largos para a mais do que previsível extinção. O desaparecimento das típicas costureiras - que a ele recorriam regularmente para que lhes afiasse as respectivas tesouras - foi um duro golpe na esperança de Fulgêncio quanto ao futuro da única profissão que conhecera e que desde os 14 anos executava com todos os preceitos que seu pai lhe havia ensinado. Também ele se vira obrigado a acompanhar a evolução dos tempos e por isso hoje conduzia uma motorizada, na traseira da qual estava o seu sustento: o aparelho com o qual afiava tesouras e facas, a troco de uma irrisória quantia. Começara com um carrinho de mão, que deu depois lugar a uma bicicleta, e hoje é à força de motor que anuncia a sua presença junto das populações cada vez menos entusiasmadas e necessitadas dos seus serviços. À força de motor e do seu característico e muito antigo apito de oito vozes - tipo gaita - onde toca a melodia com que atrai os escassos clientes. Mas hoje já nem o bonito e exclusivo som proferido por este instrumento - também ele caído em desuso - parece querer atrair quem quer que seja. Por isso, não admira que seja um Fulgêncio de ar triste e conformado que percorre, já quase sem esperança, os locais onde antes era constantemente solicitado. E porque é cada vez menos o dinheiro que leva para casa ao fim de cada dia de trabalho, Fulgêncio vê-se obrigado a enfrentar diariamente as condições amosféricas que durante os meses de Inverno, e principalmente em Dezembro, se fazem sentir com toda a sua intensidade. Véspera de Natal. Fulgêncio tenta alcançar a velha aldeia, mas esta está agora isolada pela neve. Fulgêncio sabe que tem uma encomenda para a senhora Beatriz e que não a pode desiludir. Afinal de contas, ela é uma das suas mais antigas clientes. A motorizada, já cansada, dá indicações de também não poder mais e subitamente Fulgêncio vê-se perdido no meio de um intenso nevão, sem condições de se deslocar. O frio é intenso, a visibilidade nula e as forças começam a abandoná-lo, acabando por fechar as pálpebras em definitivo, num último gesto que anuncia a sua rendição. Por breves instantes, consegue ainda sonhar com uma casa em madeira, aquecida por uma lareira onde o fogo não pára de crepitar e onde a luz de mil velas acesas em seu redor lhe transmitem o conforto e o bem-estar que, verdadeiramente, nunca experimentou. Ouve vozes e distingue um vulto que se aproxima e lhe aconchega os lençóis. Depois adormece e assim permanece. Quanto tempo não sabe. Sabe apenas que acorda num local que não conhece. Numa casa toda ela em madeira, aquecida por uma lareira onde o fogo crepita furiosamente e onde mil velas se acendem à sua volta. Não sonhara. Sempre ali estivera e agora sabe na companhia de quem. O vulto, o tal vulto com que julgara sonhar, é alguém em quem há muito deixara de acreditar. Veste de vermelho, possui umas longas barbas brancas, é grande, forte e senhor de uma voz condizente. Vendo-o a despertar, o grande vulto chega-se perto e pergunta-lhe:
- Sente-se melhor?
- Sim, sinto. Mas o senhor é quem eu penso que é?
- Parece-me bem que sim.
- Mas eu nunca acreditei que a figura do Pai Natal existisse de verdade.
- E olhe que não é o único. Mas por vezes são as coisas em que já não acreditamos que nos salvam. Que dão um outro rumo às nossas vidas e muitas das vezes chegam mesmo a preenchê-la. Não é o primeiro a quem isso acontece e, seguramente, não será o último.
- Mas isto é incrível. E sempre viveu aqui, nesta floresta?
- Sempre vivi aqui - tocando com o indicador na testa de Fulgêncio - só que fui sendo esquecido e deitado para trás de outros pensamentos.
- Mas eu nunca acreditei...
- Isso não é verdade. Todos já foram criança e sonharam um dia com alguém que nesta mesma noite os presenteava com esperança. A si também já aconteceu. Foi há muito tempo, mas se fizer um esforço vai ver que se lembra.
- Talvez tenha razão...
- Eu sei que tenho. E agora que a sua esperança se esvanecia, era altura de nos voltarmos a encontrar. Já olhou para aquele canto?
Fulgêncio rodou a cabeça, olhou e espantado nem queria acreditar no que via. A sua velha motorizada dera agora lugar a um veículo - igualmente motorizado - mas que, de tão novo, cintilava em concorrência cerrada com as mil velas acesas que o rodeavam. O próprio aparelho de afiar - que ocupava a traseira do novo veículo - estava irreconhecível.
- Mas como é isto possível? Estarei a sonhar?
- Esteve durante muito tempo, é verdade. Mas agora chegou a hora de realizar esses seus sonhos antigos. E isto não é tudo.
Nisto, um pensamento inquietou Fulgêncio:
- A senhora Beatriz! Tinha uma encomenda para lhe entregar...
- E foi entregue. A tempo e horas, não se preocupe. Agora só tem de se preocupar com o trabalho que ela e todas as senhoras das aldeias das redondezas lhe vão dar, a partir do momento em que esteja recuperado.
- Trabalho? Mas que trabalho?
- De amolador, ora! Não é o que você faz?
- Sim, mas já ninguém procura os meus serviços...
- Procurava. Pois a partir de agora, todas as senhoras vão estar permanentemente ocupadas com a confecção de todo o tipo de roupa e vestuário que as crianças de todo o mundo vão receber e que eu próprio lhes vou entregar. E você vai ser o amolador de serviço. Que lhe parece?
- Estou sem palavras!
- E forças? Ainda está sem forças?
- Não, já me sinto muito melhor.
- Está então pronto para começar?
- Sim, acho que sim.
- Óptimo.
O que se seguiu, é fácil de imaginar. A vida de Fulgêncio deu uma grande volta e desde então nunca mais teve mãos a medir, tal era a quantidade de trabalho que constantemente lhe era solicitado. E tudo porque voltou a acreditar. Acreditar que ainda era possível.

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