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TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

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Parceiros de cama

por migalhas, em 10.02.05
Fiquei destroçado. À medida que os meus olhos acompanhavam aquelas linhas, o meu coração mirrava ao ponto de chegar a pensar que iria mesmo desaparecer. As suas palavras revelavam raiva, fúria, desilusão, todos os sentimentos de revolta possíveis na hora da confrontação com uma revelação inesperada e de todo surpreendente. Alguém mal intencionado, mas também muito mal informado, havia-lhe revelado algo realmente perturbador sobre a minha pessoa. Alguém que apenas pretendia injectar veneno entre nós os dois com o objectivo único de arruinar a nossa relação. Uma relação que desde sempre se baseara na confiança e respeito mútuo, algo que parecia neste instante ser coisa pertença apenas do nosso passado. Segundo ela, com esta minha atitude hipotecara a sua dedicação, o seu amor, uma vida a dois de perfeito entendimento e sintonia, tudo em prole de outros supostos interesses que lhe omitira premeditadamente. E o que mais lhe custava, dizia ela, nem era tanto a traição ou o engano, mas a duração do mesmo. Pois, segundo as suas contas, teria de ser algo que se arrastava desde antes ainda de nos termos conhecido. Pelo que, tudo o que lhe havia dito, prometido e revelado ao longo de todos estes anos a dois, não passava agora de conversa fiada cujo objectivo fora apenas o de a conquistar. Isso era o que mais lhe custava. Saber que, afinal, estes anos todos fora apenas e só a outra. A que com ele repartira os lençóis da cama, que ela julgava apenas dos dois. Mas não. Por aquela cama, por todos os seus lençóis, havia passado mais um milhão e meio de outras companhias para além da dela. Despedia-se dizendo que não voltaria atrás na sua decisão de partir e que só se arrependia agora de não o ter feito há mais tempo. Estarreci. De onde é que ela tirara aquela ideia bizarra e absurda de que a traíra com mais um milhão e meio de outras companhias? Como se tal fosse possível. Humanamente possível.
“Quando chegas a casa ele não tem a cama sempre feita? E não é ele que insiste que a cama não deve arejar em demasia para não arrefecer? Pois tudo isso esconde as companhias com quem ele dorme. É verdade, acredita no que te digo. Hás-de ver se ele não anda com alergia. São tudo sintomas, vai por mim que eu sei o que digo.”
Esta fora a conversa que despoletara a sua desconfiança em relação a mim. Tivera-a, soube mais tarde, com uma sua amiga enfermeira que fazia na altura um trabalho de estágio sobre alergias provocadas pelos ácaros. Aqueles bichinhos horríveis que se instalam nos nossos colchões e nos nossos lençóis e se propagam aos milhões graças ao calor e à humidade de uma cama feita logo pela manhã, sem tempo para arejar. Ainda lhe tentei fazer ver que não tinha razão nas acusações que me fazia, mas, mais ainda, na improbabilidade do que me acusava. A verdade é que nunca mais ninguém lhe tirou da cabeça que os milhões de companhias que havia tido e com quem partilhara a nossa cama, não passavam de minúsculos seres com menos de um milímetro de comprimento. Hoje vive com um reputado especialista em doenças alérgicas que, segundo ela, sabe como evitar outras companhias entre os lençóis. Pelo menos a companhia dos ácaros, acredito que saiba como evitá-la, pois é a sua especialidade. Quanto às outras, àquelas que realmente interessam e que se movem sobre duas pernas, consta por aí que não as consegue evitar. Podem não ser aos milhões, mas que as tem às mãos cheias, disso não restam dúvidas. E ela, a minha ex, vai vivendo na ilusão de que se continuar sem fazer a cama todos os dias, consegue evitar que ele se torne como eu. Coitada. Nem ela sabe a cama que fez a si mesmo. “Deitamo-nos na cama que fazemos”, costuma ouvir-se dizer. E se a dela não tem ácaros, tem com toda a certeza muitos outros focos de alergia que muita comichão ainda lhe vai fazer.

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