Uma pessoa parte aos 88 anos de idade e muito provavelmente sabe que ainda assim perdeu imenso, tal a vontade com que se agarrava à vida. Ciente como sempre foi da sua própria mortalidade, mas igualmente consciente do dom que consigo carregava, este homem tudo fazia para o explorar ao limite, dedicando a sua vida quase que exclusivamente à pintura, trabalhando todos os dias num regime extremamente rígido, de várias sessões diárias, pois sabia que o relógio estava constantemente a marcar e cada segundo desperdiçado era um pedaço de vida deitado à rua, um luxo a que não se permitia. Era assim Lucien Freud, um dos mais importantes pintores dos séculos XX e XXI, falecido a 20 de Julho último. Para este irredutível realista na torrente de abstracção que dominou o pós-II Guerra, tão preciosa era a sua arte como esse outro dom de que todos somos dotados durante um período demasiado breve, como ele bem o sabia, o próprio tempo. Por isso dele fez uso por inteiro, de corpo e alma, e por ele terá prescindido de tudo o resto, à excepção de respirar e pouco mais, acredito.
3 Dias depois, a 23 desse mesmo mês de Julho, eis que parte uma outra pessoa, mas esta detentora de apenas 27 primaveras. Ou seja, com qualquer coisa como 61 anos de vida gozada a menos, se directamente comparada com a de Lucien. Obviamente que poderia até durar mais que os 88, mas seguramente jamais teria essa curiosidade em viver até lá, pois para esta outra figura da arte, a vida parece nunca ter sido assunto a merecer-lhe atenção por aí além. Apesar de ser igualmente senhora de um dom que a colocava, e colocaria, ao nível das melhores, caso assim o tivesse querido, Amy Winehouse sempre se mostrou uma figura para quem a vida parecia ser um empecilho, mas principalmente a vida de fama a que se tentara mas de que, curiosamente, fugia a sete pés. Tinha tudo para ser uma estrela, desfrutar do êxito que parecia querer persegui-la impiedosamente, mas, ao contrário de o adoptar, virava-lhe as costas e dedicava-se à auto-destruição, através do excessivo consumo de álcool e de drogas. Alheada da vida, tudo parecia fazer para que a mesma a deixasse em paz, o que acabou por conseguir finalmente a 23 último.
Duas figuras das artes: uma mais do que consagrada e experiente, e ainda assim desejosa de poder esticar o seu tempo de estada entre nós; a outra ainda no início, mas a dar já provas de que poderia voar até onde quisesse, e em vez disso a desperdiçar todo o tempo que poderia ter tido pela frente, caso o tivesse abraçado de bom grado. Dá deus nozes a quem não tem dentes ou a prova provada de que não existem duas pessoas, duas personalidades, iguais, sequer semelhantes. Que mesmo sabendo da exclusiva riqueza do que tinham para dar, uma certamente partiu sem pressa, a mais velha, experiente, consagrada, enquanto que a mais nova, em ascensão, promessa já quase certeza, correu ela mesmo para o abismo, atirando-se a ele sem receios de o fazer, na presa que tinha de desaparecer deste mundo que tanto parecia incomodá-la.
Certo é que ambos serão para sempre lembrados. Ele por ter dado tudo, ou quase, do que podia e sabia, ela por ter prometido tanto e deixar no ar a ideia de que poderia ter ido tão mais além, desperdiçando cedo de mais o que poderia ter sido uma vida cheia, partilhada com aqueles a quem agora apenas resta o travo amargo da desilusão e de tantas expectativas goradas.
Teria o outro Freud, o Sigmund, avô deste agora falecido, conseguido explicar este fenómeno por via da sua psicanálise? Que ele há coisas realmente difíceis de entender.
reflexão de migalhas (100NEXUS_2011)