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TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

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o que acabei de ler

por migalhas, em 30.03.11

Lavagante, encontro desabitado
José Cardoso Pires

JCP_Lavagante

 

Colecção: Mil Horas de Leitura, n.º 1
6.ª Edição
Fixação do texto e revisão: Ana Cardoso Pires
Formato 13,5×20,9
N.º Págs. 92
Preço com IVA: €10,00
ISBN: 978-989-95597-1-4
EAN: 9789899559714

 

(…) Curiosidade. Pôr à prova um olhar, descobrir (melhor: verificar) um corpo que se imagina, aí está o que é a curiosidade do homem em certa altura da vida. Daniel sabia isto, conversámos sobre o assunto várias vezes. Duma delas recordo-me de o ter ouvido: – Ao fim e ao cabo, as mulheres é que escolhem o momento e os termos da ofensiva. Meditam tudo em casa e passado tempo acabam por confessar: «Naquele dia, sabes, eu tinha resolvido…» (…)

(…) naquele dia, 2 de Maio, a multidão da Baixa andava alheia aos céus e às águas luminosas do Tejo: olhava as fachadas dos edifícios salpicadas de balas. Operários dos subúrbios e casais de vida repousada desceram, curiosos, dos seus bairros para visitarem as ruas onde se tinham dado os motins da véspera. Apesar dos comunicados do Governo, apesar das patrulhas e dos quartéis armados até aos dentes, a revolta rompera no coração da cidade à hora marcada pelos microfones clandestinos (…)

 

(…) «Sei o que joguei, meu amor», lê-se, entre outras coisas, numa carta escrita há uma semana por Cecília. «Mas eu não podia suportar por mais tempo a ideia de estares fechado numa prisão, tu que tanto gostas de viver (…)


Este texto nunca foi publicado em livro. Uma sua primeira(?) versão, muito reduzida, foi publicada em Dezembro de1963, no n.º 11 da revista O Tempo e o Modo, pág. 30 (edição da Livraria Moraes Editores, Lisboa), com o título Um Lavagante e Outros Exemplares, com a menção, em Nota de Redacção, de que se tratava de “(…) um capítulo do seu próximo romance, ainda provisoriamente sem título”. Existem outras versões, manuscritas, sem data, uma delas com o título O Lavagante e a Mulher do Próximo. Existem algumas versões dactilografadas, também sem datas. Todas indiciam, pelas emendas, serem posteriores ao texto publicado em 1963. É também possível perceber que se trata de um texto anterior a O Delfim, publicado pela primeira vez em 1968, pela Livraria Moraes Editores. Talvez se possa concluir que se trata de um texto cujo trabalho de escrita, tal como se apresenta nesta versão final dactilografada directamente pelo Autor, foi sendo elaborado ao longo de vários anos, mais ou menos entre 1963 e 1968.

Primavera

por migalhas, em 30.03.11

(...) Depois de meses e meses de chuva cerrada, a Primavera, com uma persistência vegetal, secreta, conseguira vencer o manto húmido que pesava sobre a cidade. Nas últimas semanas, o ar estava ligeiro, aliviado, e era a Primavera, finalmente a Primavera, tal como ela costumava chegar a Lisboa depois de muitas hesitações e de muito trabalho para vencer as nuvens da costa.

As pessoas mal dão por isso. Um belo dia sentem a necessidade de olhar o céu, vêem azul, um azul fino, alegre, e dizem: "Já sei." Depois descobrem as pombas do Rossio e as colinas pousadas diante do rio, cobertas de luz macia, feminina; descobrem uma nova expressão no andar das mulheres e um novo perfume - nelas e na cidade. E todos regressam mais tarde aos autocarros e a casa. É isso a Primavera: um novo sentido no olhar, uma nova velocidade. "Já sei", dizem as pessoas. (...)

 

José Cardoso Pires, in "Lavagante - encontro desabitado"