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Colecção: Mil Horas de Leitura, n.º 1
6.ª Edição
Fixação do texto e revisão: Ana Cardoso Pires
Formato 13,5×20,9
N.º Págs. 92
Preço com IVA: €10,00
ISBN: 978-989-95597-1-4
EAN: 9789899559714
(…) Curiosidade. Pôr à prova um olhar, descobrir (melhor: verificar) um corpo que se imagina, aí está o que é a curiosidade do homem em certa altura da vida. Daniel sabia isto, conversámos sobre o assunto várias vezes. Duma delas recordo-me de o ter ouvido: – Ao fim e ao cabo, as mulheres é que escolhem o momento e os termos da ofensiva. Meditam tudo em casa e passado tempo acabam por confessar: «Naquele dia, sabes, eu tinha resolvido…» (…)
(…) naquele dia, 2 de Maio, a multidão da Baixa andava alheia aos céus e às águas luminosas do Tejo: olhava as fachadas dos edifícios salpicadas de balas. Operários dos subúrbios e casais de vida repousada desceram, curiosos, dos seus bairros para visitarem as ruas onde se tinham dado os motins da véspera. Apesar dos comunicados do Governo, apesar das patrulhas e dos quartéis armados até aos dentes, a revolta rompera no coração da cidade à hora marcada pelos microfones clandestinos (…)
(…) «Sei o que joguei, meu amor», lê-se, entre outras coisas, numa carta escrita há uma semana por Cecília. «Mas eu não podia suportar por mais tempo a ideia de estares fechado numa prisão, tu que tanto gostas de viver (…)
Este texto nunca foi publicado em livro. Uma sua primeira(?) versão, muito reduzida, foi publicada em Dezembro de1963, no n.º 11 da revista O Tempo e o Modo, pág. 30 (edição da Livraria Moraes Editores, Lisboa), com o título Um Lavagante e Outros Exemplares, com a menção, em Nota de Redacção, de que se tratava de “(…) um capítulo do seu próximo romance, ainda provisoriamente sem título”. Existem outras versões, manuscritas, sem data, uma delas com o título O Lavagante e a Mulher do Próximo. Existem algumas versões dactilografadas, também sem datas. Todas indiciam, pelas emendas, serem posteriores ao texto publicado em 1963. É também possível perceber que se trata de um texto anterior a O Delfim, publicado pela primeira vez em 1968, pela Livraria Moraes Editores. Talvez se possa concluir que se trata de um texto cujo trabalho de escrita, tal como se apresenta nesta versão final dactilografada directamente pelo Autor, foi sendo elaborado ao longo de vários anos, mais ou menos entre 1963 e 1968.
(...) Depois de meses e meses de chuva cerrada, a Primavera, com uma persistência vegetal, secreta, conseguira vencer o manto húmido que pesava sobre a cidade. Nas últimas semanas, o ar estava ligeiro, aliviado, e era a Primavera, finalmente a Primavera, tal como ela costumava chegar a Lisboa depois de muitas hesitações e de muito trabalho para vencer as nuvens da costa.
As pessoas mal dão por isso. Um belo dia sentem a necessidade de olhar o céu, vêem azul, um azul fino, alegre, e dizem: "Já sei." Depois descobrem as pombas do Rossio e as colinas pousadas diante do rio, cobertas de luz macia, feminina; descobrem uma nova expressão no andar das mulheres e um novo perfume - nelas e na cidade. E todos regressam mais tarde aos autocarros e a casa. É isso a Primavera: um novo sentido no olhar, uma nova velocidade. "Já sei", dizem as pessoas. (...)
José Cardoso Pires, in "Lavagante - encontro desabitado"
para onde segue aquela figura triste
de homem cabisbaixo que daqui parece
deambulando como perdido por entre as brumas da sua memória
arrasta-se distante, sem coordenadas no olhar
ritmo inconstante de quem se esvai a cada instante
fantasmagórica presença, todo ele tumular
move-se, nem decidido, sobre as pedras da calçada
e que lhe dizem elas?
que umas suportam-lhe o peso, outras apenas a brisa que as varre
no corpo de fome
uns velhos trapos, um casaco puído
fronteiras que o separam do que está cá fora
nos bolsos esfarrapados as mãos afundadas
demasiadas farpas no corpo enterradas
quem é ele? é ele alguém?
ou apenas uma sombra que se move à boleia dos tempos
umas vezes de passo estugado, outras de ímpeto travado
que no vento perscruta um aconselhamento
qual bicho assustado
qual ser amargurado que olha adiante e nada vê
senão a cegueira de um nevoeiro medonho
não sabe para onde vai, desconhece de onde veio
e de permeio permite-se ausentar
só ele e uma trouxa de recordações
estrada fora, nem decidido, sobre as pedras da calçada
inédito de migalhas (100NEXUS_2011)
"O acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação. Este fogo do conhecimento, que é também fogo de amor, em que o poeta se exalta e consome, é a sua moral. E não há outra. Nesse mergulho do homem nas suas águas mais silenciadas, o que vem à tona é tanto uma singularidade como uma pluralidade. Mas, curiosamente, o espírito humano atenta mais facilmente nas diferenças do que nas semelhanças, esquecendo-se, e é Goethe quem o lembra, que o particular e o universal coincidem, e assim a palavra do poeta, tão fiel ao homem, acaba por ser palavra de escândalo no seio do próprio homem. Na verdade, ele nega onde outros afirmam, desoculta o que outros escondem, ousa amar o que outros nem sequer são capazes de imaginar. Palavra de aflição mesmo quando luminosa, de desejo apesar de serena, rumorosa até quando nos diz o silêncio, pois esse ser sedento de ser, que é o poeta, tem a nostalgia da unidade, e o que procura é uma reconciliação, uma suprema harmonia entre luz e sombra, presença e ausência, plenitude e carência."
Eugénio de Andrade
Para muito não sou tido, sequer achado
porta fora, fora de portas, que de nada serve opinar
tanta é a exclusão, a indiferença por quem também pensa, mas impossibilitado de se expressar
vergado à censura, à opressão, à prepotência de quem se julga acima de tudo, acima de todos
O dia virá em que a mudança se operará
e então um conjunto de novos e prósperos dias se erguerá daquele horizonte antes acinzentado, macerado e demais cansado de tanta promessa vã, de tanta falsidade e mentira, que não dá, só tira, em nome dessa gula tirania
Aqui, ali, um pouco por todo o lado
grassam tiques de injustiça
aos sete ventos apregoados numa viciada feira de vaidades erguida em tão frágeis barraquinhas que nem o sopro do lobo em pele de cordeiro
neste crescente pardieiro
onde já nem pão na mesa
que não há costura que tudo suture nem mal que sempre dure
inédito de migalhas (100NEXUS_2011)
uma tormenta me segue
uma vida mal vivida
uma criança perdida
um sonho que não se perfez
uma névoa, um nome
uma ponte derrubada
uma flor pendente
triste na madrugada
é um canto chorado
um olhar resguardado
um copo de vinho azedado
uma linha de fuga para outro lado
é esta azia profunda
este peito constantemente apertado
é este andar mutilado
em casa, na rua, em todo e qualquer lado
e é então aqui
só aqui neste canto apertado
na ausência que é este silêncio pesado
no avançado desta casta hora
que eu paro e penso
que eu ardo por dentro
que me toca o discernimento
no fogo abrasador que então me devora
no tiquetaque compassado que me consome e a cinzas reduz cada memória
inédito de migalhas (100NEXUS_2011)
"O que habitualmente se sofre (se sente) não se pode contar. Não é só porque isso é normalmente ridículo (porque a grande maior parte do que se pensa e sente é ridículo) e só o que é grande é que cai bem e vale portanto a pena dizer-se. É que o dizer-se altera o que se diz. O sentir é irredutível ao dizer. Só o estar sofrendo diz o sofrer. Na palavra ninguém o reconhece ou reconhece-o de outra maneira, essa maneira em que já o não reconhece o que o conta. Mas dizia eu que a generalidade do que se pensa, sente, é ridícula. São raros os momentos de «elevação». A quase totalidade do tempo passamo-la distraídos, alheados em ideias sem interesse, nascidas de coisas sem interesse, as coisas que vai havendo à nossa volta ou no nosso divagar imaginativo ou que nem sequer chega a haver porque há só a abstracção total no quedarmo-nos pregados às coisas que nem vemos nem nos despertam ideia alguma e estão ali apenas como ponto de fixação do nosso absoluto vazio interior."
Vergílio Ferreira