triste fado
«Cuidado com a tristeza. Ela é um vício.»
Gustave Flaubert
Certas noites, um pouco antes do derradeiro cerrar de olhos, eis que a felicidade resolve arrancar-me um sorriso do rosto sem qualquer tipo de aviso. Inesperado, aparece vindo do nada mas com tanto na sua génese. É ali, naquele instante, mergulhado no silêncio que então tudo cobre, que me ocorre o porquê da sua visita. Passado aquele dia em revista, apenas e só porque está mais próximo, recuo um pouco mais atrás na minha vida e apercebo-me então que este sorriso, e muitos outros que já me assaltaram e hão-de continuar a fazê-lo, mais não são que o desejo de extravasar tudo o que de bom me acontece, toda a sorte que me bafeja, tudo aquilo que me tem sido permitido atingir ao longo destes anos. Olho o tecto, de quando em vez iluminado pelos faróis dos automóveis que passam lá fora alheios a este meu sorriso, e sei que não poderia exigir mais ou melhor do que aquilo que já tenho. E ainda assim, mesmo bafejado por toda esta fortuna, não sei ser feliz. Não consigo. Parece que por muito que tenha e ainda possa vir a ter, a felicidade é algo que não me está destinado. Como se permanentemente coberto por um manto invisível que me veste da cabeça aos pés para nunca se despir, evitando assim qualquer vestígio de felicidade estampada nos gestos mais comuns do meu quotidiano. Aprisionado sou eu, numa névoa fria e húmida que se entranha e devasta, da sua frente movendo qualquer indício de alegria que se lhe oponha para me evitar viver com ela a meu lado, como se fosse meu fado a cada dia e para sempre viver por ela abandonado. Por isso estranho quando certas noites, ainda envolto no que me foi mais um dia, me deito e a meu lado ela, na calada, para inesperadamente um sorriso do rosto me arrancar. Mas mais estranho ainda quando esse mesmo sorriso consigo arrasta uma sensação boa que me percorre por todo e embala como que a querer dizer-me que me sei rodeado de felicidade, a que transborda dos que me são mais queridos e me querem de igual modo como eu os quero a eles, e ainda assim porquê evitá-la? E é por isso que nesse instante cerro os olhos e deixo-me arrastar por esse estado enlevado, crente de que soalheiros serão os dias que virão, mesmo que no céu o sol não se aviste, mesmo que eu pareça triste.