Juntem-se à centena que já o tem do seu lado e desfrutem também vocês das 24 histórias, cada qual de um género diferente, uma por cada hora de um qualquer dia que se queira apenas feito de histórias. Neste “feito de histórias“, volume primeiro, encontra-se de tudo um pouco: ele é comédia, drama, acção, non sense, mas acima de tudo viagens e devaneios próprios de quem não encara este mundo como uma coisa chata e parada. Seja para quem pretende passar um bom bocado, seja para quem quiser ficar incomodado, seja para quem não tenha mais nada para fazer e, por isso, se sinta chateado, este é o livro que não vai adiantar absolutamente nada, seja em que situação for. Caso contrário, não teria dado gozo nenhum escrevê-lo e, muito menos, partilhá-lo convosco.
Tentem-se! Está disponível para todos em http://www.bubok.pt/libro/detalles/1217/feito-de-historias--volume-1 e é gratuito. Espero que vos entretenha.
Certas noites, um pouco antes do derradeiro cerrar de olhos, eis que a felicidade resolve arrancar-me um sorriso do rosto sem qualquer tipo de aviso. Inesperado, aparece vindo do nada mas com tanto na sua génese. É ali, naquele instante, mergulhado no silêncio que então tudo cobre, que me ocorre o porquê da sua visita. Passado aquele dia em revista, apenas e só porque está mais próximo, recuo um pouco mais atrás na minha vida e apercebo-me então que este sorriso, e muitos outros que já me assaltaram e hão-de continuar a fazê-lo, mais não são que o desejo de extravasar tudo o que de bom me acontece, toda a sorte que me bafeja, tudo aquilo que me tem sido permitido atingir ao longo destes anos. Olho o tecto, de quando em vez iluminado pelos faróis dos automóveis que passam lá fora alheios a este meu sorriso, e sei que não poderia exigir mais ou melhor do que aquilo que já tenho. E ainda assim, mesmo bafejado por toda esta fortuna, não sei ser feliz. Não consigo. Parece que por muito que tenha e ainda possa vir a ter, a felicidade é algo que não me está destinado. Como se permanentemente coberto por um manto invisível que me veste da cabeça aos pés para nunca se despir, evitando assim qualquer vestígio de felicidade estampada nos gestos mais comuns do meu quotidiano. Aprisionado sou eu, numa névoa fria e húmida que se entranha e devasta, da sua frente movendo qualquer indício de alegria que se lhe oponha para me evitar viver com ela a meu lado, como se fosse meu fado a cada dia e para sempre viver por ela abandonado. Por isso estranho quando certas noites, ainda envolto no que me foi mais um dia, me deito e a meu lado ela, na calada, para inesperadamente um sorriso do rosto me arrancar. Mas mais estranho ainda quando esse mesmo sorriso consigo arrasta uma sensação boa que me percorre por todo e embala como que a querer dizer-me que me sei rodeado de felicidade, a que transborda dos que me são mais queridos e me querem de igual modo como eu os quero a eles, e ainda assim porquê evitá-la? E é por isso que nesse instante cerro os olhos e deixo-me arrastar por esse estado enlevado, crente de que soalheiros serão os dias que virão, mesmo que no céu o sol não se aviste, mesmo que eu pareça triste.
No branco imaculado da carta, uma pinga do seu sangue. Do sangue que derramara nem ele sabia porquê. O lugar e a altura não eram as propícias a um raciocínio desanuviado. E os tambores que escutava na sua cabeça, que a enchiam num ritmo sonoro ensurdecedor, também não ajudavam. Na sua mão uma carta. Que carta era aquela? Que poderia ela desvendar? Repousaria no seu conteúdo a causa de tamanha violência? Os seus dedos dormentes tentaram abri-la, mas nem isso. Sentia-se desfalecer. Não veio "selo". Veio só a carta. Esta carta. Seria ela um soco no estômago?
Há cerca de um ano que ele fotografa coisas abandonadas. Há pelo menos dois trabalhos todos os dias, por vezes até seis ou sete, e, sempre que entram numa nova casa, ele e os seus colegas vêem-se confrontados com as coisas, as inúmeras coisas rejeitadas, tudo aquilo que as famílias deixaram. As pessoas ausentes, todas elas, fugiram precipitadamente, humilhadas, confusas, e é certo e seguro que, onde quer que vivam agora (se é que encontraram um sítio para viver e não estão acampadas nas ruas), os seus novos alojamentos são mais pequenos do que as casas que perderam. Cada casa é uma história de fracasso – de bancarrota e falta de pagamento, de dívidas e execução de hipotecas – e ele tomou a seu cargo a tarefa de documentar os derradeiros resquícios dessas vidas dispersas, a fim de provar que as famílias desaparecidas estiveram em tempos ali, que os fantasmas das pessoas que ele nunca verá e nunca conhecerá ainda estão presentes nas coisas rejeitadas que ele e os seus colegas encontram espalhadas por todo o lado nas casas vazias.
Eis uma combinação que não mais se voltará a repetir (pelo menos no próximo milénio, logo, não mais durante a nossa existência). Mas será só esta? Que outras combinações, quaisquer que elas sejam, terão alguma vez direito a uma segunda oportunidade e logo em duplicado? Cópia a papel químico uma da outra? Nenhuma, nada o tem. Que nada nesta vida ou em vida alguma se permite a repetições. Quanto muito semelhanças, quiçá a tais coincidências de que tanto se fala, mas nunca tal e qual, cuspido e escarrado (que nojo!). Apenas a curiosidade de três números que se equivalem, hoje, sempre, mas que neste particular de se associarem na data que hoje vivemos nada mais virem a ser senão memória a guardar para, quem sabe, um dia mais tarde recordar. Hoje, consta assim. Amanhã, outra variável terá a sua exclusiva oportunidade de se mostrar e, terminado esse seu fugaz reinado de um tempo que é sempre contado (para ela, para nós, para tudo), extinguir-se-á, para nunca mais ser coisa palpável, visível, possível. Resta a sequência mais ou menos aleatória de todas as outras variáveis (que não os dias, os meses ou mesmo os anos), a qual nos garante uma vida, no mínimo, surpreendente ou, se quisermos, recheada de incontáveis incertezas que tendem a elevar o seu grau de dificuldade, especialmente para nós, meros humanos, que a galope seguimos, melhor ou pior montados no seu dorso esguio, sinuoso, mas sempre escorregadio.