Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

100Nexus

TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

facebook

ao cair da tarde

por migalhas, em 20.09.10

Era tarde. De tarde. O sol ameaçava já com o seu recolher para se acolher sob o manto quente e perpétuo do horizonte sempre deslumbrante. Ficava tarde. Decidir o que fazer, partir ou recuar e nas palavras o conforto sentir. Era talvez hora de se redimir. Se a cabeça lhe apontava um caminho, o de ida, de deixar para trás, virar as costas, já o coração, esse emocional imprevisível e sempre de discurso mais sentimental, o encaminhava para o entendimento por essas mesmas palavras, pelo discurso redentor, pelo tentar de novo a aproximação. Ambos a pairarem sobre o seu ser, qual diabo, qual anjo, e a ser-lhe de difícil decisão a qual atender, se aos dois, se a nenhum, se seguir com o que pudesse ser nem carne nem peixe, qual vegetal de proporções ecológicas na lógica que agora lhe faltava, rivalizando em igual medida com a falta de sequer querer entender esse porquê. Era tarde. Cada vez mais e mais tarde, já quase a fazer-se noite. A hora do lobo, a hora do sono. Não cairia nessa tentação, a de se deixar levar pelo retemperador descanso que pela manhã o fizesse ver tudo de uma outra perspectiva. Não iria facilitar, nem apressar a decisão, apenas confiar no que viesse adiante, fosse tarde ou mais tarde ainda fosse. Nada seria deitado a perder, pois muito estava em jogo e da sua próxima jogada alguém haveria de sair sofredor. Pelo menos um, não fossem os dois assim ficar, no lamento de uma decisão tomada à revelia da própria compreensão, capaz de os deixar em solidão, nessa sofreguidão de se quererem mais e mais e no processo apenas hipotecarem esse seu amor numa palavra mal interpretada, num gesto mal pensado, numa frase mal ensaiada. Talvez a proximidade do vasto manto de mar amenizasse essa ira que era falsa mas que era o que agora imperava, no decurso de tanta palavra amaldiçoada. Porque sofrem os que amam? Amar sempre rima com ficar, mas a si pertencia-lhe a decisão de partir, se assim o entendesse. Mas nem isso. Nada era dado ao entendimento naquele falso sentimento que o consumia e levava a ponderar que caminho tomar. Sabia que uma palavra tudo poderia mudar, mas teimoso, obstinado no seu estúpido orgulho, tudo deitaria a perder e a ela também. Sabia, fora ela que lho transmitira, que não contaria com nova oportunidade. Haviam-lhe sido dadas as suficientes para se redimir numa incompreensível dádiva que nenhum outro humano consciente poderia um dia vir a entender, pois que nem tanto ao mar nem tanto à terra. Que ela era tudo o que ele jamais poderia desejar. Que ela o amava de alma e coração e, ainda assim, todo esse ouro ele recusava numa indecisão em que só se vaticinava a sua perda. Fosse hoje, fosse um dia, fosse quando fosse, seria sempre tarde demais. Tarde demais para regressar. Aos seus braços, outrora expectantes, sempre por si, pelo seu abraço fugidio, de quem foge sem saber porquê ou de quê. Por isso correu veloz, mãos nos ouvidos para não mais se ouvir e saltou. Daquele penhasco saltou, os braços abriu e dotado dessas asas voou. Um último voo, este em direcção ao sonoro mar que sempre o avisara que seria com ele que um dia mais tarde se iria encontrar, para com ele, uma certa tarde, se vir a casar.