Ininterrupto, A Small Tale
Ininterrupto.
A provar a sua certeza sem recurso a grandes esforços. Bastava estar por ali a sentir-lhe o silvo de quem grita desesperadamente por uma qualquer ajuda que não se entende. Aflitivo, a querer esgueirar-se por quantas frestas se lhe propusessem e lho permitissem. A fazer-se convidado, a impor-se, a imiscuir-se nas nossas vidas, as que vivíamos neste instante em que se fazia figura mais do que presente, figura insistente. Lá fora reinava e queria-se a reinar aqui também. Uivava como os lobos uivavam quando o ouviam a gritar por uma qualquer ajuda que nem eles entendiam e por isso uivavam como que a dizerem-lhe:
- “Que queres tu, que sopras e gritas e uivas como um desesperado, perdido na noite escura que nem a mais escura de quantas noites sem lua, sem nada que nos alumie uma pista sequer, um sinal que possamos seguir à confiança.”
E ele sem receio, vergonha ou inibição de espécie alguma, a fazer-se imperial, a querer-se actor principal daquela noite escura, invisível como o breu que a cobre, nos cobre, manto protagonista do tempo que empurra em saraivadas de força bruta, sem licença ou permissão, impostas contra vontade. E eu ali, impotente, a tentar abrigar-me da sua fúria que me tinha a mim e a todos os que se lhe ousassem ao caminho alvos da sua ira desenfreada. Eram horas, as suas horas. Era tempo, o seu tempo. E ele sabia-o, num reinado que não escolhia altura certa, pois que todas o eram, para ele, prepotente ser que tudo levava na frente e aí de quem lhe fizesse frente! Eram horas de deitar e ele acordado a todos despertar. Era tempo de dormir e ele lá fora a bater à porta e a querer entrar para a todos acossar. E quantos muros, e quantas fortificações ou elevadas muralhas seriam precisas para lhe abrandar o passo? Sim, abrandar, que travá-lo, nem quantas balas imaginadas. Invisível, mas nos efeitos do mais visível, campeão na velocidade com que se põe aqui e logo ali, mágico na arte em como se duplica, ora aqui e ali também, com igual vigor, com igual intensidade, chama, vontade. Sem aviso, que é sua a lei que lhe permite abusar, ser e estar a seu belo prazer, sem que nada ou ninguém lhe consiga um basta, um refrear de intenções que são sempre supremas, lei a vigorar sem mandato, sem eleição, que todo o mundo é sua jurisdição. E eu aqui, pequenino perante a sua ferocidade, a querer-se colosso sem freio que nos atemoriza e faz pensar. Serão estas frágeis tábuas, estas mínimas telhas, este alpendre agora sem nexo, de pequenas ripas erguido, qual mundo muralhado sem qualquer efeito, poder ou sentido, coisas capazes de enfrentar esta coisa que não se sabe, adivinha ou prevê, mas querendo é tudo e é toda a força que tudo consigo transporta? Aqui são vinte e três horas e trinta e dois minutos. Capicua. Coincidência? Ou uma certeza como a que ele é, agora, neste instante em que esbraceja tal e qual um enorme polvo, levando a quantos quadrantes a sua fúria, como não existe outra. Resta-me a esperança em que encontre a razão e nela se embale apaixonado, deixando aquele ímpeto de lado e trocando a sua força brava pela brava impetuosidade da paixão súbita, e de tão breve a consumir as suas forças que o hão-de deitar por terra. E nessa hora serei eu de novo, olharei o céu de novo e lá no alto encontrarei novo céu, a aguardar-me e a perguntar-me:
- Onde estiveste? Que fizeste tu, que nada te ouvi dizer enquanto ele berrou?
E eu não terei resposta para dar-lhe, apenas expressar-lhe que eram vinte e três horas e trinta e dois minutos e o tempo voava no seu colo, no meu, no do mundo que era seu então e seu será sempre e para sempre. Que é ele que impõe e nada nem ninguém jamais ousará sequer pensar que haverá lugar a qualquer outro modo, senão este que é o seu, o meu, o nosso, de todos.
Ininterrupto.