Na omissa luz do dia
Que poderia eu encontrar naquela praia à noite que não encontrasse de dia?
Na falta da luz que o sol lhe irradiava de dia, na preparação que havia que dar à vista para apurar algum do seu discernimento.
A apelar aos sentidos, aos outros, que a vista ali jogava desfalcada.
A atentar no mar, no ritmo como a maré se apresentava, nos ruídos que ali pareciam todos a estrear, no frio que se intrometia entre os demais receios.
A experimentar a cegueira e a louvar-lhe o valor.
Os pés caminhando descalços pela areia fria, ora seca ora molhada, mas irremediavelmente fria.
Eu um autómato, movendo-me sempre atento, sempre alerta, cana na mão e muita determinação no passo estugado, dentro do possível.
O que repousa numa praia à noite?
O que cresce enorme no mar, que não o vejo, das entranhas da sua profundidade imensa, tamanha área desconhecida que quanto mais noite dentro maior a dimensão.
E nem me atrevo a olhar o céu, esse ainda mais imenso.
Carregado de estrelas, tantas que me deixa perplexo na insignificância do que sou, no ridículo do peso, conta e medida que assaz me atribui no balanço das suas contas.
E as arribas. Erguidas do ventre da terra para ali se imporem, fazendo barreira ao progresso do mar. Tão ameaçadoramente altas e majestosas na sua imponência imperial de seres com capa e espada que nos impõem respeito e nos incutem um continuado estado de súplica face ao que são e representam.
E ao largo luzes. Dos barcos dos pescadores que tentam na pesca o seu ganha-pão. Toda a noite sobre o manto escuro e espesso que tudo esconde no seu estado frio e então descolorido. Nas redes parte do seu cerne, ainda a debater-se, vivo, pela manhã na lota, a troco da nota que lhes paga a noite passada na sua companhia, a do mar, a do manto intenso que sustem barcos, tripulações, carga que lhe subtraem, parte do seu cerne.
Fazia uma fogueira, mas isso denunciava-me. Por isso descanso sobressaltado sob o manto de sua majestade, uma arriba a servir-me de tecto, rezando para que, pela manhã, seja o sol a despertar-me e não uma qualquer sereia a cantar-me a morte que aqui arrisco, arrastado pelos tentáculos do mar, maré que por ali me sentir se ousou a ser maior e me puxou, e de repasto a seu amo me entregou, esse mesmo que me tragou, num festim a ser paga por tamanha ousadia, a de me fazer àquela praia na omissa luz do dia.