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TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

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tudo por nada

por migalhas, em 23.07.09

elas, palavras

sem intenção

mortas de motivação

são esqueletos em que não me revejo

nem mesmo à distância de um sussurro que passa e para trás deixa apenas fumaça

como ele passa

a cair profundo, entornado do seu estado passivo

vertido de um céu macerado

de uma manta feita farrapos

colcha que já não cobre, antes semeia discórdias

a dias, como riscos no céu

na calma aparente que contraria o que é activo, altivo

e tão dormente que nem se sente

como quem descansa de tão exausto e os olhos cerra

para se ver renascer mais adiante

acordado num atalho nunca cruzado

por tudo

por nada 

nem pelo seu fado

ósculos meus

por migalhas, em 20.07.09

os meus beijos pesam duzentos quilos
por isso osculo tão pouco

com receio de esmagar quem me aceite este cumprimento

 

os meus beijos têm duzentos metros de altura

e é do alto dessas duas centenas de metros que os lanço a quem os queira

são poucos, admito

o medo de se estatelarem de tão grande altitude levam-nos a recear a oferta

que a muitos faço chegar de pára-quedas, na esperança de evitar males maiores

 

os meus beijos valem o seu peso em ouro

e a sua altura em fornadas de pão quente que pela manhã distribuo porta a porta junto daqueles que com eles se banqueteiam agradados e encaram cada dia mais aconchegados

pelos meus beijos

os que vou servindo amiúde, pois excessivamente pesados, demasiado altos

 

façam fila, sim, tirem senha, aguardem vez e aventurem-se

afinal o amor é um fardo e o meu começa na sua forma mais simples

Mar adentro

por migalhas, em 17.07.09

O mar não escolhe os dias

Não tem vida agendada, nem hora marcada

Apresenta-se sem rodeios em cada feroz embate que dita aos seus emissários

Às ondas grandes, às pequenas vagas, a cada tentáculo que arremessa vigoroso contra o seu leito de rochas feito

Em assaltos temerários que se introduzem pelas fissuras de anos de erosão

De tantas e tantas cargas sobre esta brigada pesada

Que um dia do ventre terrestre se impuseram

Vigorosas estátuas a erguerem-se das profundezas

E a fazerem-se barreiras naturais à natureza do mar

Todos os dias, que ele não escolhe os dias

E às ondas e às vagas e vagalhões que não se quedam

Por nada nem por ninguém

Essas estruturas que um dia hão-de derrubar

Pacientemente, na persistência dos dias

Daqueles que não escolhem

Da soma de quantos lhes enfraquecem as defesas e nessas se introduzem como o cancro que corrói ou a ferrugem que desgasta e destrói

Que o mar não se faz rogado

Apresenta-se sem rodeios e sem rodeios faz-se convidado

Aqui, ali, em todo o lado

Porque é o mar e o mar não se queda

Por nada nem por ninguém

Isolado

por migalhas, em 09.07.09

Que é isso de ilha?

Oásis perdido, em quantos oceanos, imensos

Água tamanha a enrolar-se à sua volta

Num abraço apertado, a perder-se no longe ténue

Ainda assim sequiosa, e assim a morrer

A espraiar-se no mar, pela mão da fina areia

Na fusão incapaz que nunca se perfaz

É viver sozinho em multidão

A estender a mão e nada levar

Nenhum toque, nenhum olhar

É ter vizinhos mil e sozinho habitar

A cair de bêbedo sem o vinho sequer provar

É desfalecer na rua e ainda assim ignorado

Atropelado, trucidado, e nem um, de tantos, se comover

É não saber para onde ir, se ir

Sabendo-os aos milhares, os destinos

Partidas, chegadas, viagens cruzadas

Todas estagnadas, perfeitas imagens

Gastas, amareladas, de quantas revistas surripiadas

A decorarem a memória que não tem hora

Que não lhes sabe ou reconhece

Um único lugar que não conhece

Aqui, onde seja

Deambula perdido, sem tino

Afogado num mar, também profundo, mas de gente

Que não compreende, que não o sente

Abandona a mesa, deixando-a só

E sem ordem sua da janela espreita a rua

É tanta a gente, a ele indiferente

Que a seus pés o chão mexe, o corpo estremece

No corrupio dos que vão, dos que de volta estão

Todos por comum de alma esventrados, limpos

Como o frango que lhe foi repasto

Que palita agora dos dentes, vazio de significado

Prestou-se a contento, agora só pensamento, breve, esfumado

Ele uma ilha, o tal oásis, invisível miragem

Tantos os olhos, nenhuns os olhares

Agoniza, como em tempos o frango, carcaça de asas decepadas

Dilacerado, miúdos ao lixo, a seu lado

Repousa neles os seus olhos e também neles nada vê

Sabe apenas que foram, parcelas vivas daquele todo agora desmembrado

E ele? Que não vai a nenhum lado?

Como poderá dessa forma ser lembrado?

Não o será, é certo

Apenas morrerá

Da forma que viveu, o tempo que perdeu

Arrastado, agastado por nem se entender

Alguém que o mate, lhe ponha cobro à dor

Antes que ele a tome nas suas mãos

Num inexistente momento de fervor

E para sempre isolado seja o seu estado

Na moldura da memória que não tem hora

Eternamente derrotado

Sem chama, nem vestígio de glória

bastar-me-ia um dia

por migalhas, em 07.07.09

bastar-me-ia viver um dia e de cor todos os outros saberia
a pressa que dou ao tempo, na pressa que é o tempo
as palavras que não digo, já nem lhes ligo
as palavras que já não ouço, ninguém mas diz
quanto de mim que não dou, que foi que eu fiz?

o que impera é incerteza, mesmo no que julgamos certeza
os fogachos de felicidade, os sorrisos sumários
a ausência de interpretação, subjugada à tirania da reacção
tudo quanto era emoção, trucidada pela cínica razão
um escasso olhar de ternura, um segundo de fé no que é candura
que nada do que é belo perdura
senão tarefas, deveres, obrigações
monstros opressores que nos consomem às revoadas
incessantes no ritmo com que nos impedem e roubam toda a vida
aquela que conheço de cor
bastar-me-ia um dia

Cinismos.2

por migalhas, em 06.07.09

Aqueles que procuram agradar andam muito enganados. Para agradar, tornam-se maleáveis e dúcteis, apressam-se a corresponder a todos os desejos. E acabam por trair em todas as coisas, para serem como os desejam. Que hei-de eu fazer dessas alforrecas que não têm ossos nem forma? Vomito-os e restituo-os às suas nebulosas: vinde ver-me quando estiverdes construídos (...)

 

Antoine de Saint-Exupéry, in 'Cidadela'

Cinismos.1

por migalhas, em 02.07.09

Eu hei-de falar-lhe lugubremente
Do meu amor enorme e massacrado,
Falar-lhe com a luz e a fé dum crente.

 

Hei-de expor-lhe o meu peito descarnado,
Chamar-lhe minha cruz e meu Calvário,
E ser menos que um Judas empalhado.

 

Hei-de abrir-lhe o meu íntimo sacrário
E, desvendar a vida, o mundo, o gozo,
Como um velho filósofo lendário.

 

Hei-de mostrar, tão triste e tenebroso,
Os pegos abismais da minha vida,
E hei-de olhá-la dum modo tão nervoso,

Que ela há-de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há-de chorar, chorar enternecida!

 

E eu hei-de, então, soltar uma risada…

 

Cesário Verde