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TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

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à distância

por migalhas, em 01.06.09

que martírio maior que saber que no seu dia ela lá e eu aqui
fechado, trancado, o coração destroçado de a saber logo ali e eu aqui
sem nada que o justifique, apenas a obrigação estúpida de marcar presença
fantasma, que ninguém me vê, sequer me ouve
e ela lá, a aguardar que eu lhe surja de rompante, cumprindo uma promessa que na sua cabeça se perfez então, quando incapaz de a confrontar com a impossibilidade lhe vi nos olhos cintilantes a esperança que para si era tudo
e eu doente, o coração dormente, a sofrer de partido, sabendo que não poderia dar-lhe algo tão simples como a minha presença
estúpida vida esta, que nos martiriza assim, no dia que é dela e da irmã e eu aqui, à distância da estupidez feita obrigação
hoje (visto que todos os dias seria impossível) deveria reinar o bom senso, quem sabe uma lei que permitisse a singela liberdade de usufruir dos nossos filhos, da sua companhia, da de cada criança e com eles permitirmo-nos a sê-lo também, uma outra vez, recordando quando o fomos e o que entretanto esquecemos desde então
reinasse em certos corações o sentir profundo e honesto pelo que é uma criança e tudo aquilo que ela nos suscita e estariam todos proibidos de permanecer longe de cada uma que fosse
por um instante que fosse, que estes são tão escassos, sempre fugidios e tão imensamente valiosos

As crianças, hoje e todos os dias

por migalhas, em 01.06.09
Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites e simultaneamente sem fronteiras, esse reino é o da infância. A esse país inocente, donde se é expulso sempre demasiado cedo, apenas se regressa em momentos privilegiados — a tais regressos se chama, às vezes, poesia. Essa espécie de terra mítica é habitada por seres de uma tão grande formosura que os anjos tiveram neles o seu modelo, e foi às crianças, como todos sabem pelos evangelhos, que foi prometido o Paraíso.
A sedução das crianças provém, antes de mais, da sua proximidade com os animais — a sua relação com o mundo não é a da utilidade, mas a do prazer. Elas não conhecem ainda os dois grandes inimigos da alma, que são, como disse Saint-Exupéry, o dinheiro e a vaidade. Estas frágeis criaturas, as únicas desde a origem destinadas à imortalidade, são também as mais vulneráveis — elas têm o peito aberto às maravilhas do mundo, mas estão sem defesa para a bestialidade humana que, apesar de tanta tecnologia de ponta, não diminui nem se extingue.
O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão monstruosa que, frequentemente, é usado como argumento para a negação da bondade divina. Não, não há salvação para quem faça sofrer uma criança, que isto se grave indelevelmente nos vossos espíritos. O simples facto de consentirmos que milhões e milhões de crianças padeçam fome, e reguem com as suas lágrimas a terra onde terão ainda de lutar um dia pela justiça e pela liberdade, prova bem que não somos filhos de Deus.

Eugénio de Andrade, in 'Rosto Precário'