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TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

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Com três palavras apenas

por migalhas, em 29.05.09
Felipe lembrou-se da história do Rei do Oriente que, desejando conhecer a história da humanidade, recebeu de um sábio quinhentos volumes; ocupado com negócios de Estado, pediu-lhe que a condensasse. Ao cabo de vinte anos, o sábio voltou e a sua história ocupava agora apenas cinquenta volumes; mas o rei, já velho demais para ler tantos livros volumosos, pediu-lhe que a fosse abreviar mais uma vez. Passaram-se de novo vinte anos, e o sábio, velho e encanecido, trouxe um único volume com os conhecimentos que o rei procurara; este, porém, estava deitado no seu leito de morte, nem tinha mais tempo de ler sequer aquilo. Aí o sábio deu-lhe a história da humanidade numa única linha: "Nasceram, sofreram, morreram".
 
Somerset Maugham, in "A Servidão Humana"

A evidência dos factos

por migalhas, em 28.05.09

Se, por um daqueles artifícios cómodos, pelos quais simplificamos a realidade com o fito de a compreender, quisermos resumir num síndroma o mal superior português, diremos que esse mal consiste no provincianismo. O facto é triste, mas não nos é peculiar. De igual doença enfermam muitos outros países, que se consideram civilizantes com orgulho e erro.
O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela — em segui-la pois mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz.

(...) Para o provincianismo há só uma terapêutica: é o saber que ele existe. O provincianismo vive da inconsciência; de nos supormos civilizados quando o não somos, de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades por que o não somos. O princípio da cura está na consciência da doença, o da verdade no conhecimento do erro. Quando um doido sabe que está doido, já não está doido. Estamos perto de acordar, disse Novalis, quando sonhamos que sonhamos.


Fernando Pessoa, in 'Portugal entre Passado e Futuro'

como ele passa

por migalhas, em 27.05.09

o tempo passa por mim
como ele passa
abalroa-me e soca-me e molesta-me e nunca lhe consigo a identidade
atropela-me e arrasta-me e subjuga-me e depois foge para a frente
sempre para diante, esse tempo
como ele me marca sempre que por mim passa
e passa sempre, a todo o instante se perfaz maior e maior e a passar por mim sempre e a todo o instante a fazer-se maior e eu a mirrar a seus olhos
obstinadamente na sua marcha para diante, que é como ele passa, sempre, por mim, por todos, por igual
a querer-nos, a todos, no gume da sua navalha que corta as eras todas que transpõe
horas, dias, semanas, meses, anos, décadas, o tempo todo junto, o imaginado e o que nem se imagina, todo ele somado, amontoado, na missão que é a sua
de nos levar adiante de si em ciclos velozes, ferozes, e deles fazer alimento à sua combustão, ser-lhe alento na sua obsessão
eterna ontem, para sempre imparável
o tempo
como ele marca sempre que por aqui passa

Esgoto da humanidade

por migalhas, em 26.05.09

Das pessoas que atingem posições elevadas,
cerimónias, riqueza, erudição, e similares:
para mim tudo isso a que chegam tais pessoas
afunda diante delas — a não ser quando acrescenta
um resultado qualquer para seus corpos e almas —
de modo que elas muitas vezes me parecem
desajeitadas e nuas, e para mim
uma está sempre zombando das outras
e a zombar dele mesmo ou dela mesma,
e o cerne da vida de cada qual
(a que se dá o nome de felicidade)
está cheio de pútrido excremento de larvas,
e para mim muitas vezes esses homens e mulheres
passam sem testemunhar as verdades da vida
e andam correndo atrás de coisas falsas,
e para mim são muitas vezes pessoas
que pautam as suas vidas por um hábito
que a elas foi imposto, e nada mais,
e para mim é gente triste muitas vezes,
gente afobada, estremunhados sonâmbulos
tacteando no escuro.

Walt Whitman, in "Leaves of Grass"

Forever young

por migalhas, em 25.05.09

A criança é criativa porque é crescimento e se cria a si própria. É como um rei, porque impõe ao mundo as suas ideias, os seus sentimentos e as suas fantasias. Ignora o mundo do acaso, pré-elaborado, e constrói o seu próprio mundo de ideais. Tem uma sexualidade própria. Os adultos cometem um pecado bárbaro ao destruir a criatividade da criança pelo roubo do seu mundo, sufocando-a com um saber artificial e morto, e orientando-a no sentido de finalidades que lhe são estranhas. A criança é sem finalidade, cria brincando e crescendo suavemente; se não for perturbada pela violência, não aceita nada que não possa verdadeiramente assimilar; todo o objecto em que toca vive, a criança é cosmos, mundo, vê as últimas coisas, o absoluto, ainda que não saiba dar-lhes expressão: mas mata-se a criança ensinando-a a ater-se a finalidades e agrilhoando-a a uma rotina vulgar a que, hipocritamente, se chama realidade.

Robert Musil, in 'O Homem sem Qualidades'

cair profundo

por migalhas, em 22.05.09

falece-me o chão sob o peso dos meus pés de aço
em breve nas entranhas desta terra que nunca entendi, sulco galerias por entre quadros de figuras em barro
é a terra que me engole e eu deixo-me ir, quem sabe a essência me escute e se dê a entender em laivos de luz que antes nunca se perfizeram
é o caminho profundo que me leva ao cerne de quanto acontece sete palmos abaixo do nível que antes percorri com pés pesados, a arrastá-los
sinto-me ir, no desamparo do nada que me sustém, até onde de novo solo, pedaço firme, nem que seja de terra, que me apare o entendimento
enquanto isso, penso no bom que seria voar
qual ser dotado desse fulgor libertador
a alcançar o topo de um arranha-céus e dele se precipitar
num voo sem memória, num acto singular
até que uma voz, a que diz
              vais-te despenhar
              findo o sonho que te fez voar
              cerrada essa porta de par em par
              selada a janela que não te há-de ver chegar
por fim são, jamais salvo

Bondade

por migalhas, em 20.05.09

(...) só se chamarão bons os de coração recto, os não flexíveis, os insubmissos, os melhores. Reinvindicarão a bondade apodrecida por tanta baixeza, serão o braço da vida e os ricos de espírito. E deles, só deles, será o reino da terra.


Pablo Neruda, in "Nasci para Nascer"

Mortais, comuns

por migalhas, em 19.05.09

(...) A morte (ou a sua alusão) torna os homens delicados e patéticos. Estes comovem-se pela sua condição de fantasmas. Cada acto que executam pode ser o último. Não há um rosto que não esteja por se desfigurar como o rosto de um sonho. Tudo, entre os mortais, tem o valor do irrecuperável e do perdido.


Jorge Luís Borges, in "O Imortal"

riscos no céu

por migalhas, em 13.05.09

o céu está riscado
violado no seu azul imaculado
e não é pelo lápis do poeta
nem de ninguém no seu perfeito estado
antes pelo progresso pateta
que se intromete mesmo onde não é chamado

há riscos no céu
que se cruzam para o deixar desfigurado
traços sobre traços rasgando o imaculado azul que não deveria ser tocado
que Deus assim o fez apenas para nosso deslumbre
e nós a interferir e sobre nós a somar pecado

a rasgar o ar
o majestoso e louvado céu a embelezar
apenas uma mão cheia de pássaros na sua arte de voar
suspensos nas asas que lhes permitem o céu almejar
apenas eles, donos de um espaço que é seu papel dominar

e então o homem a fazer-se pássaro
a borrar a pintura de um céu apenas com pássaros dos que sabem voar
e nele a impor-se, contranatura
e nele a querer vingar, contranatura
ele que nem voar sem a ajuda de um monte de lata
de uns quantos reactores
e esses a riscarem os céus
num progresso pateta
que se intromete em todo o lado
mesmo onde não é chamado

calma aparente

por migalhas, em 05.05.09

a calma aparente vive aqui ao lado
paredes meias com um estado dormente
qual animal por demais esfomeado
suspenso num tempo sempre latente

é só passar a ombreira daquela porta
atravessar a fronteira que não demora
e num fugaz hiato encontrar-lhe o anonimato

veste de paz, serena no seu estar
ela que não se deixa enganar
no propósito bárbaro de nos fustigar

apenas eu sou levado ao engano
de que passada a ténue linha que nos separa
sobre o passado passo um pano
e desse nada se me depara
um novo mundo que me acena e me tenta
como coisa rara
maior a tormenta