"Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente."
Clarice Lispector, in "Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres"
"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmo lugares...
É tempo da travessia.
E se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos"
neste mundo de papel
parcela do que sou hoje, que amanhã não sei
neste ínfimo solo que piso e que nem é meu nem de ninguém
é do mundo, é dum infinito que não conheço, nem quero
não me compete, foi-me cedido por instantes
os que tento preencher com a felicidade do que respiro e vivo
furioso com quem não entende quão fácil é existir, coexistir
quão simples é alcançar o pleno, o todo que aqui vimos descobrir e afinal sempre à nossa frente
bastasse querer e espalhar uma só palavra
AMOR
"A pior coisa que pode acontecer a um autor é ser respeitado, sobretudo quando esse respeito nasce no meio literário. O meio é pequeno, claustrofóbico e deixa pouco espaço de manobra aos autores: ou se está dentro ou se está fora. Quem está fora não interessa; quem está dentro, arrisca-se a ser bajulado ad nauseam. A bajulação (na forma de resenhas, prémios ou palmadas nas costas) sempre criou os seus monstros (na literatura e no futebol) e, a partir do momento em que se perde de vista a condição primeira do escritor – ser um incompetente que tem de reaprender o seu ofício todos os dias e, por vezes, precisar de ajuda para o fazer –, bem podemos dar o escritor como morto. Perdeu o respeito por duas coisas fundamentais: o editor, que o poderia ajudar a descobrir tudo o que está errado com a sua escrita; e o leitor, que deve ser escutado com muita atenção, porque o leitor tem sempre razão."
nada é para sempre
que para sempre não existe
nada se perpétua no tempo nem mesmo as parcelas do tempo
nada risca o manto azul do céu ou cruza igual manto mas de mar feito por mais do que um breve instante
que o para sempre é tão divino como as entidades a que nos agarramos por medo ao que não entendemos
a duração de tudo é um período de nada que ocupa uma parcela de espaço vaga
pois que mesmo o espaço é fugaz e é etéreo e é esperança que julgamos eterna
quando eterna nem a vida
antes uma partida com chegada garantida
num para sempre que em nós se perfaz e desfaz num piscar de olhos
a contentar-se com pouco, com quase nada, com aquilo que é a felicidade
na simplicidade do que nos encharca o coração
mentindo e conspirando um engano que ganha forma então
esse para sempre
sempre e só ilusão
Que ilação tirar desta improvável possibilidade
De atentar em dias consecutivos a sequências fascinantes, de tão especiais
E nesse preciso momento estar presente
olhá-las nos seus algarismos redondos e assistir ao seu nascimento
instantes depois, ao desaparecimento
a mais um algarismo que se lhe acrescenta na ordem que se segue, esbatendo o encanto desses números redondos, de tão especiais fascinantes
numa breve vida de minuto em que se perfazem
em que aprendem a respirar, crescem e em contra-relógio olham de frente a morte que os espera, cessado esse fugaz instante
agora vê-se, agora não
na brevidade do tempo que são
como tudo é, sejam números belos, o que seja que ouse ser
num desafio que não escolhe, sujeita-se
ao rigor de um período que lhe é estipulado
lhe garante o seu estado
e que findo, caducado, passa ao seguinte
que a existência é isto mesmo
o espaço que ocupamos por um tempo indeterminado
a sombra que formamos por um tempo indeterminado
o tempo indeterminado que respiramos até pela morte sermos atropelados