Até às oito
A minha vida começa às oito.
Não da manhã, mas oito da noite.
Até lá, às oito de cada noite, apenas finjo a vida.
Faço o que todos fazem, vou onde todos vão, falo e ouço o que todos falam e ouvem.
Até lá, às oito da noite, sou uma pálida imagem do que pretendo ser, sou um faz de conta que soma afazeres e coisas inúteis, até às oito da noite.
Depois dessa hora, dessa fronteira que tarda em chegar a cada dia, e quando as pétalas já preparam a despedida de mais um punhado de horas luminosas e se encerram até nova aurora, sou eu quem floresço e acordo rumo ao que resta da vida que o dia ainda tem para me proporcionar.
Depois revelo-me.
E acordado desse estado sonâmbulo que até aí experimentei, faço-me então ao âmago da minha vida, completo junto dos que me são mais, junto dos que me olham, respeitam e admiram pelo que sou e nunca pelo que esperam que seja.
Depois das oito badaladas, das oito badaladas da noite, viajo pelo mundo do que para mim é a realidade e que só então me é finalmente permitida, tantas horas depois.
É como quem chega a casa depois de mais um dia de entediante labuta, de inconsequentes ilusões, e liberta o seu cão, até então ali fechado a sete chaves, num apertado apartamento moderno que lhe serviu de prisão e lhe toldou movimentos, lhe impediu a vida por quantas horas ali permaneceu.
Assim sou eu, até às oito.
Até às oito de cada noite.