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TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

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Lá fora empalidece

por migalhas, em 28.10.08

O Outono empalidece.
Tudo à sua volta se redobra em esforços inúteis e é o cinzento quem mais molesta.
Uma pausa, uma sensação de que as ruas passam por nós e não nós por elas.
E as pessoas? Por quem passam as pessoas?
Por outras pessoas, embora não as olhem nos olhos.
E os dias a observarem. A observarem tudo atentamente e cada novo passo de quem passa pelos dias e nem a estes os olha nos olhos.
Dias em que o céu se rasga e nele laivos de um tempo que parece estagnado. Como as águas paradas de um esgoto a céu aberto, rasgado, ferido de morte por um golpe que lhe foi profundo em demasia. E dele a soltarem-se mil almas, a erguerem-se quantas vidas dizimadas e os dias a observarem, atentamente a observarem, sem nada acrescentarem senão o tempo que derramam como lama de uma enchente que tudo submerge à sua passagem.
E lá fora, enquanto anoitece, o Outono empalidece.
E do alto desse Outono, que esmorece, indigente, folhas cansadas da uma vida incerta lançam-se na incerteza de uma outra, quais gárgulas fantásticas, empedernidas figuras que nos beirais se reúnem em bandos de um esplendor assustador para se abeirarem do dia e dele fazerem eterna noite.
E tudo a empalidecer, mesmo aos olhos de quem não olha nada, nem nos olhos. Em redor de um tempo que só espera pelo Inverno seguinte para se intrometer em quantos corações, com a ligeireza do gume afiado que nem se sente, depois dormente e por fim, já perto da morte, tudo escurece, quantos dias, todos os dias, daí para a frente.

Até às oito

por migalhas, em 22.10.08

A minha vida começa às oito.

Não da manhã, mas oito da noite.

Até lá, às oito de cada noite, apenas finjo a vida.

Faço o que todos fazem, vou onde todos vão, falo e ouço o que todos falam e ouvem.

Até lá, às oito da noite, sou uma pálida imagem do que pretendo ser, sou um faz de conta que soma afazeres e coisas inúteis, até às oito da noite.

Depois dessa hora, dessa fronteira que tarda em chegar a cada dia, e quando as pétalas já preparam a despedida de mais um punhado de horas luminosas e se encerram até nova aurora, sou eu quem floresço e acordo rumo ao que resta da vida que o dia ainda tem para me proporcionar.

Depois revelo-me.

E acordado desse estado sonâmbulo que até aí experimentei, faço-me então ao âmago da minha vida, completo junto dos que me são mais, junto dos que me olham, respeitam e admiram pelo que sou e nunca pelo que esperam que seja.

Depois das oito badaladas, das oito badaladas da noite, viajo pelo mundo do que para mim é a realidade e que só então me é finalmente permitida, tantas horas depois.

É como quem chega a casa depois de mais um dia de entediante labuta, de inconsequentes ilusões, e liberta o seu cão, até então ali fechado a sete chaves, num apertado apartamento moderno que lhe serviu de prisão e lhe toldou movimentos, lhe impediu a vida por quantas horas ali permaneceu.

Assim sou eu, até às oito.

Até às oito de cada noite.

Seres tu

por migalhas, em 16.10.08

Observo atento o seu rosto pelos primeiros raios de luz e nunca lhe sei a vontade
Não me perco em tentativas e tomo as rédeas do que lhe é mais querido
E sou ventríloquo louco, a vestir personagens que só o são nas nossas imaginações, e sou silêncio, no silêncio próprio da pantomima que a desperta
E vou com calma, ao de leve, que é assim que funciona e deveria sempre, com todos nós, a cada dia
Aos poucos conquisto-a, e abre-se um sorriso e dois e já faz uso da voz para me contestar
E sei-a na mão, a que lhe dou e com a qual a ajudo a erguer-se do mundo onde sonhou por algumas horas para experimentar a realidade de estar do lado de cá agora
Os rituais da manhã seguem o nosso ritmo viciado, que é sempre apressado
Mas não o dela, que o seu mundo move-se a par duma naturalidade que para ela faz todo o sentido
E também a mim, só que não a posso praticar, sob risco, sob tantos riscos que só o são porque os assumimos como tal
E vamos brincando e eu numa constante a tentar contrapor-lhe o contra-relógio em que está, em que estamos, envolvidos, mas que a ela pouco lhe diz
E saímos à rua e saudamos o dia e chegamos ao ponto de separação, até mais logo, muito mais logo
Logo demais, pois sei que vou perder tanto de ti, quem sabe quase tudo, a grande parte, eu sei
Mas que posso eu fazer? Queria eu, e tanto, poder ver-te, sentir-te, ajudar-te e acompanhar-te a cada passo, a cada dúvida e brincadeira que perfazes, no teu ritmo, que um dia, e infelizmente para ti e para o mundo, irás perder
No dia em que te tornares num de nós, naquilo a que nós adultos chamamos de adulto
Até logo boneca, aproveita este teu dia e brinca e sê criança ao segundo, ao ritmo que é ser criança, que o papá tem de ir fingir que vive, para te permitir uma vida de que nunca te arrependas.

Em memória

por migalhas, em 13.10.08

Ainda ontem aqui, presente

Ainda há um segundo apenas, presente

Presente de uma vida que se fez curta no momento seguinte

Naquele em que partiste e te fizeste ausente, agora para sempre


Em memória de Rosário Vieira

Movido a gente

por migalhas, em 10.10.08

Em cada canto em que me encontro, encontro gente. Pedaços de vida que agem por si, pelas mãos e pernas e pela cabeça de cada pessoa que encontro em cada canto deste imenso mundo sem cantos, tão mais enorme quão mais minúsculo se apresenta por existir vida e gente em cada um dos seus cantos, mesmo os mais recônditos. E de pensar que tantos quilómetros, milhares, área a perder de vista, pois daqui nem lhe avisto uma ínfima parte, e ainda assim no mais improvável dos locais uma vida, um bater de coração, uma actividade que se mostra e age por sua conta e conta a sua história, enorme, a querer-se impor ao que é grande, pois aqui existe, aqui se impõe. É o respirar de um improvável existir, aqui, ali, por todo o lado que o é, um bater de asas que se ergue no ar e de lá avista movimento. Não um movimento qualquer, mas humano, de gente feito, um continuado alento sempre em estreia aos olhos do mundo, a dizer a quantos o queiram ouvir que em todo o lado, para onde quer que nos viremos, existe vida que mexe, se sente e faz sentir que faz andar a máquina que faz mover o mundo e o torna especial, pois respira e murmura em cada esquina, mesmo sabendo-se redondo e por isso sem esquinas, mas repleto da mais essencial das essências; a vida, que lhe é lenha, combustível, sangue a correr-lhe veias adentro num movimento perpétuo e continuado, impossível de se ver parado. E ainda bem, sorte a sua, do seu fado, que assim seja.