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100Nexus

TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

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Aqui me deito

por migalhas, em 29.02.08
Os tons ocre cobrem o deitar do dia como uma imensa manta de tantos retalhos que somos cada um, que somos todos nós. Os mesmos tons que lhe aconchegam as paisagens e lhe avançam as boas-noites num sono que se prevê breve, até que nova escala de tons, agora em crescendo dos mais escuros aos vibrantes de tanta luz, ocupem o seu turno. Mas antes, o negro total, o breu que não encontra paralelo nem mesmo na mais escura escala de pretos, densos, que nos cegam e nos fazem recear monstros, os monstros todos que ganham vida nessa palete intensamente carregada. E nesse sono em que me deito, ainda não refeito do nada que me preenche, é aos sentidos que apelo e neles procuro abrigo. Aos sentidos, todos, os cinco e mais um, um sexto que nos é intuição, que nos é instinto e sensação que nos sobrevém de um simples toque, de um simples olhar. E com eles me fundo, eles que me adornam, me vestem, o lado visível e o outro, o sensível, o lado emocional, aquele que me proporciona o ambiente propício ao ser e estar genuíno, onde sou e estou como sei ser e estar, o ser e estar que me é essência animal, que é aquilo que sou, no meu derradeiro refúgio, o meu espaço, a minha intimidade, onde sou mais emoção, na vez da razão que, lá fora, na rua, me comanda cada passo, todos os dias a quase todas as horas, e me preenche de nadas cheios de vazios que são tudo e coisa nenhuma, até se desfazerem na bruma, naquela em que me deito, ainda nem refeito desta vil dor que me lacera o peito.

Terra nenhuma

por migalhas, em 20.02.08

Esta terra não é a minha terra.
Nenhuma terra é a minha terra.
Nenhum grão do que seja, de terra, de areia, do que seja, é terra que eu pise.
Eu não piso chão algum.
Eu não me movo, não me atrevo, nesta ou em qualquer terra.
Quantos anos somam as poeiras que me ferem a vista cansada?
As mesmas que me tragam entranhas e pele e os olhos feridos, esbatida a visão que me toldam numa rajada de vento vil e doentio.
Poeira traiçoeira que me devora e impede de pisar o chão, chão algum.
Me fustiga a alma dilacerada, me expulsa desta casa que não tenho, que não habito, como a terra, terra alguma, seja qual for.
Nenhuma terra é a minha terra.
Eu não vivo, nem respiro, não me movo, nem respiro, não existo, nem respiro.
Em terra alguma, eu não tenho terra, eu não a exijo, não a permito.
Esta, esta terra que não é minha.
Nem esta nem terra nenhuma.

 

inédito de migalhas (100NEXUS_2008)

Amor sem tempo

por migalhas, em 14.02.08

Hoje diz-se dia do amor. Daquela estranha sensação que começa do nada, da pequena fagulha que depois se empolga, ganha confiança e se propaga, avança, alastra a todo o corpo, veste-o, violenta-o, como o fogo que incendeia louco, devasta matas e árvores e todo o coração que se lhe atreve ao caminho, e segue, segue sem se imaginar a morrer, não agora, não em breve, não nunca. Por isso um único dia seria sempre pouco para tamanho empreendimento. Pois que tudo se hipoteca em seu nome, tudo se lhe disponibiliza, o que se tem e o que ainda não se imaginou sequer possível de se ter. E nunca um dia, dois, os que fossem. Nem duas vidas, quantas vezes. Ou não fosse essa coisa a que chamam de amor a mais impossível definição, a mais improvável sensação, a mais inconcebível certeza, tudo e nada, céu e terra, o céu em terra. Nada se constrói como se constrói o amor. Leva todo o tempo, o que se tem e o que ainda não se imaginou sequer possível de se ter. Por vezes nem duas vidas, por vezes nem todo o tempo que alimenta o universo. É assim o amor. Incontável, imensurável, impossível, improvável, inconcebível. E não adianta tentar defini-lo, tentar aprisioná-lo ou sequer domá-lo. Pois isso não seria amor, pois isso não seria amar.

 

© Copyright Migalhas (100NEXUS_2008)

Sujo, como convém

por migalhas, em 12.02.08
Sempre que lavo dinheiro, faço asneira. Não sei se é do detergente ou que coisa eu faço de diferente. Talvez devesse escolher um programa para as cores, pois debota por inteiro. E mesmo com amaciador, sai todo amarfanhado, com um aspecto que nem depois de engomado. Garantiram-me que era uma limpeza, que a coisa resultava na perfeição. Lá limpo fica ele, até cheiroso. Mas não volta a ser o que era, isso é que não. E quando julgava que inchava, esticava, se multiplicava até à exaustão, eis que encolhe, subtrai-se e por vezes desfaz-se, assim, sem razão. E depois para o enxaguar? Estendê-lo, nem pensar, e na máquina de secar, acaba por se evaporar. Ainda tentei com as moedas, que mais pequenas se lavam às dezenas. Furaram-me o tambor e o barulho com que o fizeram foi ensurdecedor. E nem deram para pagar o arranjo, pois que sem solução. Só uma máquina nova, para agravar a situação. Virei-me para o crédito, daqueles que estão na moda, e na hora tinha o guito, com que fui à loja aderir à promoção. Sem juros me endividei e desde então, meses a fio, da prestação escravo fiquei. Uma, várias, as que me venderam para que uma nova máquina não fosse apenas ilusão, mas coisa palpável, ali em minha casa, naquele mesmo canto onde um dia me tentei a lavar dinheiro e só deu mesmo foi confusão. Mas aprendi a lição; que importa se o dinheiro está limpo ou não? Ninguém o cheira e nem por isso vale mais que o outro, o sujo. O que desde então passei a usar e muitas alegrias não se cansa de me dar.