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TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

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Não me sinto em nenhum lado

por migalhas, em 28.01.08

Não me sinto em nenhum lado. É vazio aqui, ali, por onde passo, para onde me movo e o que resta é o pensar, tarefa singular que não partilho. As marés sucedem-se, trazem o mar acima e repõem-no no seu lugar. Eu sou as marés, eu sou o que subo nas horas e nas luas definidas e eu me retiro para o meu lugar, sem saber qual ele é, apenas que não em maré-alta. A boiar é como eu me sinto, a pairar sem querer, na ténue superfície das águas calmas, naquela fina lâmina que separa o estado submerso do que ainda lhe resiste e do topo assiste à vista que se afunda na pesada massa calma de azuis que fogem para os negros, à medida que também a vista nela se perde. A mente paira, esvoaça breve e não se detém, nem em nada nem em ninguém. É ser livre, é-o nas águas límpidas, é-o nos campos ainda frescos pela geada da madrugada, é-o rumo ao azul do céu e nem este é o limite. A mente vagueia, vagabunda não se prende, não tem morada, não remete a nada, não se compromete, viaja sem malas e não se detém, face a nada nem a ninguém. É como se tudo, o que é e está ainda para se formar, nada fosse ou representasse. Uma ilusão, uma ficção que não é minha, que lhe sei o enredo apenas por que o ouvi de alguém. A pairar acima de tudo, a olhar a uma distância segura, a observar de fora e a pensar que tudo tem de mudar, eu sou parte e peça e ingrediente e mais que tudo isso sou a pessoa que está, provoca e faz acontecer. Não me posso distanciar, é o que sou, é o meu ar e tenho de o respirar, tenho de o viver, pois só com ele posso ser. Ainda assim tudo parece tão distante, a anos-luz do que faço e acontece e do que sou e quero ser e como quero que seja. Agora não me sinto em nenhum lado. É vazio aqui, ali, por todo o lado por onde passo. Mas vou acertar o passo e prometo que não será mar profundo ou abismo maior que me vergará e fará ceder. Nem que agora seja apenas um vazio disforme, vazio que é preâmbulo da maré-alta que me espera, pois sei-me capaz de a acompanhar, pois também eu sou as marés. E sendo-as, as areias redesenharei, as enormes arribas de pedra oscularei, as grutas mais escuras, os recantos mais inóspitos eu alumiarei e com a força que só o mar tem, a todas desafiarei para voltar a respirar aliviado, num epílogo que de tudo fará então apenas um momento sonhado em mau, que nem memória deixará, pois não lho permito.

Gente diferente

por migalhas, em 24.01.08

Estou e sou, como também tu estás ou és. A diferença não pode ser muita, somos gente, carne e osso e alma e mais aquilo de que nos fizeram. Ele está, é. Está e é como nós, que estamos, que somos, que carregamos as pernas, as duas, com o nosso ser e estar, com o nosso caminhar, com os locais onde vamos, como vamos, e que são elas que nos levam lá, quando não é apenas a mente e por isso a cabeça também, nem só as pernas, as duas. É um peso medonho e é a vida toda a contar com elas, as três, as duas pernas e a cabeça também. E vós? Como estais, como sois? Podia tratar-te por tu, pois és carne e osso como toda a gente e eu sou gente. E tu gente és. Mas alguém me disse que era melhor tratá-lo assim, que era assim que gostava de ser tratado, pois que tem outro estado, se bem que nado e criado como cada um, como gente que somos todos e vós também. Eles estão e eles são e eles avisaram-me de antemão que era assim que muitos se tinham aos olhos do mundo, dos outros que os vêem como humanos, iguais, e não como senhores imperiais. Mas crescem e florescem e proliferam como no mato o cogumelo e não tarda são mais que muitos, mais que a gente, os que nascem e crescem como toda a gente que é humana. E não tarda soterram-nos, já nos pisam, mas soterram-nos, espezinham-nos e comprimem com as suas ideias, ideais, que são os seus e nunca os demais, dos humanos, da gente que é gente e cresce a pensar que é gente e que todos os outros também o são. Mas não. Pois há gente e os que sendo gente o são diferente. E, infelizmente, são esses que governam toda a gente, o rebanho que se mexe iludido que todos assim são e que sem contar com os que não, vivem a ilusão de que são senhores da sua existência. Quem nos governa, comanda, nos encaminha na ponta da seta, são afinal os tais, os que se querem de outra forma tratados, pois que têm outro estado, por isso diferentes. Eu estou e sou, como também tu estás ou és. A diferença é que não o controlamos como julgamos que sim. Pois há gente que, como nós ainda assim diferente, nos comanda o querer, o estar e o ser, nos encaminha na ponta da seta, a nós, rebanho de tanta gente, gente de carne e osso e alma e também ilusão de que somos, são, assim, mas não. Por nós, por eles, o são, alguém, que nem sei, apenas que sendo gente, é gente diferente.

Enlevado sonhado

por migalhas, em 22.01.08

Enlevados os campos olham-me num estado sonhado. De resto, nem nada. A erva que calco, a planície matizada que me foge ao olhar e entra no céu, por ele dentro, permissivo à sua ofensiva que se faz natural, eu é que os confundo. E quando os vejo, a esta distância, já os dois se fundiram e um é o outro e já os confundo. Daqui onde estou tenho esta vista abrangente, de onde vejo tudo o que é urgente, a calma dos prados, um voar assobiado, o espreguiçar compassado de cada pétala, um reino inteiro ensonado. Tudo o resto são criaturas paradas no tempo parado e frondosas árvores que se posicionam como senhoras do seu espaço e o expandem, em raízes silenciosas que avançam sorrateiras, quais toupeiras matreiras, a infiltrarem-se em campo alheio e a apossarem-se dele. Eu é que as confundo e na abrangente visão, tomo-as por bravos cavaleiros que avançam destemidos, lutando apenas pelo que dita o seu coração. Um pestanejar apressado e ei-los regressados, semblantes carregados, uns e outros que se arrastam, pesadas as espadas, ainda mais as armaduras. Confundo-os com seres derrotados, de uma brutal guerra regressados, cansados de tão derrotados. Olhares suplicantes nos olhos encovados, um, todos, ensanguentados, tantos ensanguentados que deixam vermelhos os verdes prados, carregados do que deram por uma causa que não os quis e os atirou para a derrota, a que carregam e arrastam cansados, derrotados. São sombras e sabem que o são. Viveram as trevas e voltaram para as contar. Sabem agora o que eu também sei, quando julgo enlevados os extensos prados, ao olharem-me naquele estado sonhado. Pois que de resto, nada. Nem ninguém. Tudo eram rosas, na hora em que tudo se permitia. Mas na hora que se seguiu, malfadado o destino que nos benzeu, somos todos sem excepção ignorados, vista grossa ao nosso estado, tudo, todos, a inteira nação que nos acolheu. A nação que os nossos nomes gritou, o nosso hino entoou e quando nos olhou, foi daquele modo meloso, enlevado, num estado que não era sonho então, mas ser e estar esperançado, numa mão cheia de muitas coisas, coisas boas, e não a derrota vestida por estes guerreiros derrotados, semblantes carregados, uns e outros que se arrastam, pesadas as espadas, ainda mais as armaduras, nem assim resistentes às agruras. É isso que vejo. De perto, de longe, a vista é esta e já a confundo. A vista daqui, dali, superficial ou a que vai matreira como a raiz toupeira e vê mais e mais fundo.

A seus pés

por migalhas, em 18.01.08

Inspirou fundo e avançou. Temia, nem sabia bem o que temia, mas sabia-se temente a algo que lá fundo lhe dizia, vai, mas vai atento. E avançou, impossível que estava agora de recuar. Já dera o primeiro passo e seguia-se um segundo, um terceiro, uma correria que fazia dos passos, passadas, largas, amplas, a chegarem onde a passo nunca iria. E foi, mais confiante, e falou, mais ciente, e de repente todo ele era voz e razão e vontade de mudar tudo, aqui, onde estava, mas também lá fora, na casa ao lado e do outro lado do rio, que fluía breve, como as palavras da sua boca. Na sua eloquência ganhava forma uma árvore enorme, esplendorosa, que se ramificava em mais e mais jogos de letras, longos ramos de frases maiores e mais complexas, palavras que eram folhas também, e uma sequóia frondosa ganhava altura, crescia, quase a tocar o azul brando daquele céu complacente, e das suas raízes vertia uma altitude que só do seu topo permitia contemplar a beleza inerente à sua figura. Abaixo dela, a sombra criada era a da paz para que contribuíra com a mais eficaz das armas. A arma falada, a que expõe, a que sincera diz o que acha, que pensa e nela refugia a sua ideia, o raciocínio que o pôs a passo, primeiro, e depois a correr, veloz, atrás de um vento impossível de suster, imprevisto, que podem ser rajadas e logo após apenas brisa leve, brisa breve. E quando regressou, daquele antecipado inferno regressou, era imagem confiante, gente importante, a sentir-se grato por ter falado a verdade, de que nunca se divorciara. Provou a si, provou a todos, que sendo espelho, a água límpida e cristalina que nada esconde, a palavra tudo consegue. Combate medos, ergue cidades inteiras, a seus pés imponentes florestas, antes moribundas, retomam viçosas o seu ciclo, toda a vida que um dia foi vida e morreu ressuscita num milésimo de segundo, e vozes, muitas e afinadas, num coro irrepreensível, entoam hinos a uma esperança que se julgava perdida, qual queda num infinito precipício, para sempre perdida. Foi então que a lagarta se fez mariposa e esta se fez enorme animal alado que, num voo enfeitiçado, rasgou o ar e resgatou o mundo daquelas trevas, daquele outro lado. Só por que falou e quando o fez fê-lo transparente, sem dúvida aparente ou outra que fosse, qualquer que fosse. Despido mostrou-se e foi como veio ao mundo que este o abraçou, lhe deu guarida, o alimentou. Um mundo que se julgava sem regresso mas que nele encontrou forma de o fazer. E assim renascer.

Folhear as vidas

por migalhas, em 14.01.08

Alvorar com os livros, inspirá-los, expirá-los, respirá-los, querer ser uno com cada um, com todos, pele da nossa pele, carne da nossa carne. Adormecer junto a eles, nos seus braços que são as páginas e sentir cada abraço sussurrado de histórias mil que só eles dizem, só eles contam, como contam. A sua nobreza, figura respeitosa, o que em si reúnem, factos, memórias, ideias loucas ou coisas tão poucas e ainda assim de pasmar. As linhas, as sequenciais linhas de texto, a perfilar cada letra como numa parada em dia de festa. São elas que se unem para nos maravilhar, se amotinam, se revoltam, fazem-nos seus aliados, fiéis seguidores. São a ordem e a desordem, são o que querem ser, ganham vida e para a eternidade exigem viver. E nós olhamos, embevecidos, cada nova associação, cada nova palavra que se perfaz dessa vontade de partilhar e gritar ao mundo o que lhe vai lá dentro, a essência do escritor. O papel, a sua textura, o suave toque que nos acaricia os dedos enquanto canta músicas de embalar com que nos deixamos enlevar. É fácil viver-se para os livros. Amá-los como se ama uma pessoa, entendê-los, respeitá-los, expressar-lhes o nosso sentir mais profundo, apaixonado, irado, tudo partilhado. Ninguém se divorcia de um livro. A relação, mesmo breve, é para a vida. E de cada um resta sempre um pouco que nos completa, que nos acrescenta parcelas, nos ensina a crescer, nos distrai o viver. A vida, a vivida e a que eles contam, que nos narram de formas e por conteúdos tão diversos, que embelezam ou cruamente nos expõem, já só a imagino fluida nas suas páginas. Extensões dos braços e mãos que as tornaram possíveis, tentáculos das mentes que as sonharam, rodovias por onde circula a nossa imaginação, aqui sem regras, apenas ela, solta, na liberdade de um vasto prado em flor, a estender-se para todo o norte, e para o sul, e para este, e oeste, até um horizonte, vários, tantos como os que acenam a norte, a sul, a este e a oeste. Todos inalcançáveis, todos. Mesmo os que não o são. Um epílogo é prólogo e um prólogo se faz epílogo a cada hora, a cada novo ouvinte das melodias que entoam e que confundo com o canto dos pássaros, à solta na liberdade de um vasto prado em flor. Imortais páginas, tantas, a impossível morte anunciada de uma resma delas escritas, senhoras de sete vidas, todas as vidas paridas, as possíveis e as outras também. Sei-os, aos livros, para lá de mim, de toda a gente. Sei que daqui por milhentas luas, continuarão a contar, a falar a outros o que um dia lhes saboreei e me fez o viver tão mais apetecível. E nada, nem ninguém, os fará calar. Vozes que folheiam a vida com todo o cuidado e, como sequiosos vampiros, tragam-lhe o suco que depois dão apenas a provar. Um livro é um sábio mentor que nos inicia no vício ilusório de querer o que jamais se pode ter. E mesmo exposto, cínico insinua-se a cada anoitecer, para nos sossegar com as boas-noites até novo amanhecer.

Em devagar

por migalhas, em 10.01.08

Não lhe consigo a fuga, uma distância que se ganhe a cada avanço. Sinto que um passo que dou, logo dá dois e de mim se aproxima, como o susto de encontrar o monstro que habita sob a cama em que durmo inquieto. Sobressalto sobre sobressalto, a vida estática, a estátua em que me faço, receoso do que me espera ao virar da esquina da próxima mudança. Abutre cínico, de olhar aguçado na presa que definha e sem saber já caminha, rumo à armadilha que se perfilha, voraz, mordaz. Banquete de reis, enquanto pelo deserto se cansa e morre, sem nenhum oásis que lhe valha, canalha que nem a mão lhe estende. Ver-se assim, a morrer em devagar, sabendo-o e nem se lhe poder virar, sentir-se de novo e contrariar, dizer que ainda não é agora, para já. É tão mais forte a força que o leva a desistir. Braços pesados à vertical de um corpo que, moribundo, aguarda apenas pela cobarde estocada final do pássaro frio que nos consome só de olhar. A areia é um manto de tantos grãos que juntos são multidão onde nos enterramos. É padrão único, enganador, a traição a quente que vomita fogo em golfadas pesadas que nos gelam as entranhas. As veias. Sangue congelado que veste a estátua por dentro e lhe dá a roupagem da desgraça, em tons que se erguem indefinidos e sempre na moda. Um oásis seria verde sobre este manto igual, por isso se ausenta e entra, mas noutro filme. A cena repete-se num drama que não clama por fama e que tem por destino o esquecimento de quem nada é ou ambiciona. Agora que se vê a morrer em devagar, sabendo-o e nem se lhe poder virar, sentir-se de novo e contrariar. Morrer para sempre, sem volta a dar. Ponto final, no momento em que sucumbe ao pesado enlace do passo gigantesco que lhe acode e socorre, evitando-lhe a dor de seguir. De se fingir capaz, de se julgar proprietário cego de um bem que nem isso, nem nada, nem ninguém o tem. O falso que se intromete, em tudo se mete, inoportuno que nos compromete, um muro que se ergue e cresce, cresce, a tapar o sol, a fazer a noite, a impingir-nos o escuro e a vendê-lo, como quem vende a mãe, vende tudo, até a alma ao diabo. Sabes que em tempos que já lá vão, também eu fui uma majestosa árvore como tu? Linda, alta, frondosa, única. Quantas e quantas vezes proporcionei refúgio refrescante a quem sob mim se acolhia em dias de sol intenso e abrasador. Como este que aqui vês, a queimar-me a tez, que pálida afirma o terror pela morte. E serenidade. A mesma serenidade que tu transmites, também eu a propiciava às pessoas. Para que pudessem parar um pouco e reflectir sobre as suas vidas. O que tu és, já eu fui. Em tempos idos, hoje páginas amareladas pelo correr do tempo ofegante. Incessante. Como o deixei de ser, agora que desisto, de tudo me dispo e a este deserto enfermo me entrego, às mãos de um destino que sempre assim me quis, mas que, traiçoeiro, mo omitiu. Segundos antes pressenti a estocada e ele riu. Riu.

Parar

por migalhas, em 09.01.08

Onde estás?

Para onde vais?

Não tencionas ficar?

Ainda agora pousaste as malas e nem as esventraste.

Fica.

Fica por uns tempos e aprecia. Olha sem aquele olhar apressado, que nada retém. Observa à tua volta, capta com o outro olhar, o de quem atenta e interioriza. Faz memória.

Não te prendas apenas à partida. Faz da chegada uma celebração, mas dá-lhe tempo. Tempo de se formar, de ganhar vida e de merecer uma partida, nunca apressada, ponderada.

Desfaz as malas, retira delas o que te acompanha, o que te segue para todo o lado, para cada destino onde nunca ficas por muito mais tempo do que uma breve parcela de um ínfimo período.

Descansa, o mundo não te foge. Essa ânsia sim, leva-te sempre vantagem e é isso que te faz segui-la. Tentar que não se afaste em demasia e lhe percas a noção, a percas de vista. Tenta tirá-la da cabeça e por segundos repousar os olhos no que se te apresenta à volta. Não é novidade, mas para ti parece, do modo como reages. Pareces olhar tudo pela primeira vez, como se acabado de nascer.

O mundo sempre aqui esteve, tu é que não paraste para o ver e nele atentar, devagar, para depois o desfrutares. Sem correrias, sem apressada respiração, apenas contemplador.

Vês como é belo?

Não me agradeças. Dedica-te apenas a ele e recupera o que dele perdeste.

A minha menina

por migalhas, em 07.01.08

A pequenina ali ficou, a chorar. A exteriorizar com lágrimas abundantes o que não consegue dizer, a sentir-se assim, triste, mas incapaz de contrariar, pois é pequenina e tem de obedecer. E eu, que até sou forte, se bem que não seja insensível, isso não, olhei-a e deu-me um aperto forte, aqui no coração. Mas resisti a tomá-la nos braços, a enleá-la num abraço apertado, a resgatá-la das mãos da educadora e partir na sua companhia para um dia diferente. Um dia que a fizesse rir, com aquele sorriso que me derrete, com aquelas observações que me desfazem o coração e me fazem sentir tão orgulhoso. Em vez disso, de um dia assim, diferente, que a fizesse rir muito, por vezes à gargalhada e eu com ela numa cumplicidade que só pai e filha, virei-lhe costas e fui à minha vidinha. E ela ali, a chorar, tão pequenina, a querer dizer com lágrimas que não queria ali ficar. E eu, cruel, mesmo sabendo, virei-lhe as costas e deixei-a triste, incapaz de contrariar a sua tristeza e fazê-la feliz. Com um dia diferente, a passear, a ver o mundo, a fugir dos compromissos comuns e a viver junto com ela e a ouvi-la rir, por vezes à gargalhada. Partiu-se-me o coração vê-la ali, assim, naquele pranto. Mas fui cobarde e fugi. Fui à minha vidinha e em vez de um, ficámos os dois assim, tristes, longe um do outro, eu arrependido e ela a soluçar. Agora só a vejo ali, pequenina, a chorar, aquele rosto sentido, a chamar, a querer fugir e não poder. Incapaz de contrariar, pois é pequenina e tem de obedecer. E eu, por que sou adulto e tenho sempre outras coisas para fazer. Mesmo sabendo-a prioridade e sabendo que andarei de coração partido de cada vez que assim acontecer. É que um dia deixará de ser pequenina e então como será? A minha menina?

Contas feitas

por migalhas, em 04.01.08

Contas feitas ao período de férias, fins-de-semana, feriados e pontes, o ano que agora se dá a conhecer apresenta um saldo de possíveis 144 dias de descanso face a garantidos 222 de sangue, suor e lágrimas. A esta distância, a coisa até parece bastante positiva, para além de tentadora e motivadora no sentido de nos pôr, desde já, a pensar em planos de fuga, escapadelas e rotas evasivas que nos permitam folgar dos dias conturbados que haverá, disso ninguém duvide. E se nesses dias em que corpo e mente se ausentam do local que a cada dia nos retém, muitas vezes para além do desejado, e dessa forma nos libertamos, resta nos outros – nos tais em que nos sentimos aprisionados, em que surge uma sensação de perda, de clara inversão das nossas prioridades e desejos – adoptar uma postura e um compromisso de aceitação face ao que temos e fazemos, que nos permita vivê-los com disposição e deles retirar sempre qualquer coisa que nos alimente e ajude a crescer saudáveis. Esquecer o negativismo e olhar o horizonte que sempre parece tão longínquo e inalcançável, mas que está apenas à distância da nossa vontade e do nosso querer mais profundos. Pois que nada acontece, nem mesmo a nossa vida, sem o nosso esforço e dedicação sinceros. Quem sabe se encarando este novo ano sob esta perspectiva, tal nos permita, chegado o seu termo, fazer um balanço bem mais positivo. E sentir que ganhámos, que acrescentámos à vida, na vez de a chorar perdida naqueles dias em que, inevitavelmente, tivemos de a ocupar com trabalho. Fará bem à alma, ao corpo e, acima de tudo, à mente.

Nova sequência

por migalhas, em 01.01.08
Antevia-se forte, como um vento do Norte. Previa-se avassalador. Adivinhando-o possante, cada um movia-se já ao seu ritmo, assustador, como por ele guiados. Multidão, multidões, gente desenfreada correndo de um lado para o outro, loucos, quase todos, por igual, loucos. Aproximava-se veloz, os segundos a voar, a sua centelha a piscar num crescendo meteórico que acabaria por ofuscar e à sua passagem, feroz, a sua marca deixar. Como uma pesada sombra, um rufar de imensos tambores servia-lhe de banda sonora ardente, movimento consciente a anunciar a sua proximidade. Temido.
“É ele! Está aí a chegar! Abriguem-se!”
Assim fizeram. Todos recolheram a suas casas, reuniram-se com as suas famílias, parentes, amigos, entes mais queridos e juntos rezaram. Uniram as mãos e apelaram à sua face apaziguadora. Aquela que se mostra misericordiosa com todos nós, pecadores nunca inocentes, e não nos arrasta na sua maré de sofreguidão. O mundo quedo pára, aguarda em silêncio as doze badaladas e ansioso espera. Trará consigo paz? O homem voltará a entender o homem seu igual e de novo o chamará de irmão? Nada. Lá fora a neve inicia-se e em flocos aveludados beija o chão como numa bênção de agradecimento. Um aviso de que tudo continua bem, para sossego de quantos. O temido passou e segue a sua rota. Qual não sei, nem ninguém como eu. Virá para fustigar? Será benigno, este? E os outros? Os que se seguirão? Trarão consigo esperança? A força da razão? Algo maior que o faça mais tolerado? Pois que o medo viaja a seu lado e neste confronto desigual é seu poderoso aliado. Resta-nos esperar e, quem ainda o lembre, rezar. Pois que não depende da nossa vontade, feita aqui na Terra ou no longínquo e misterioso céu.