Naquela hora - parte dois
Naquela hora farei coisas que jamais voltarei em horas iguais.
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Naquela hora farei coisas que jamais voltarei em horas iguais.
Naquela hora, que não outra, moviam-se as partes, num todo profundo.
Era a hora, que nunca seria outra, exclusivo irrepetível deste incansável mundo.
Três são os ponteiros, um vagueia vagabundo, enquanto os outros o empurram apressados.
Correm rumo à hora, aquela hora, todas as horas, na sequência que dita o tempo.
E não há quem os pare, quem a pare, àquela hora, que não é outra, mas que se cola e soma a todas as outras, numa corrida que não se ganha.
É deste somatório, sempre crescente, que nasce a aurora que morre a poente e nesse breve ser e estar a luz se faz, para logo se cansar e no escuro se ir deitar.
Naquela hora, num mero instante, apenas aquilo se perfaz e nada mais.
Não adianta querer forçar, o tempo antecipar, prever ou sequer planear, pois naquela hora não mais do que aquilo nela terá lugar.
É assim, sempre o será e nada nem ninguém o ousarão desafiar.
Pois que não sabem, não podem, não naquela hora, nem em hora nenhuma.
Esperou uma vida inteira para nascer e mal se perfaz logo se vê morrer.
Não é uma hora qualquer, é aquela hora.
Eternidade fugaz, apenas aquela, nenhuma outra.
Ali se fez, por instantes vingou, e é num encantatório voo de mariposa que deposita toda a sua essência, depressa feita ausência, coisa distante, a ficar para trás.
Naquela hora foi, aconteceu.
Depois em paz, sem querer incomodar, lentamente se desvaneceu, foi.
Partiu e de si apenas nos deixou a breve marca cravada na carne da nossa existência.
Soubemo-la real, todas o são, somos nós a prova.
Naquela hora foi ela, aquela hora e nada mais.
Tanta futilidade, tanta desnecessária preocupação.
Ou será apenas fachada?
Mais parece.
Olho nos olhos de quem me encara e imagino: Quem lhe sou eu? Que vê? O que reflicto, de mim transpira?
Sou assim ou igualmente falso?
Não sei, mas não me contento.
O mundo subverteu os seus valores e agora é apenas aparente ilusão.
É imagem deturpada e eu não a entendo.
Saber que para lhe sobreviver assim também terei de ser.
Não sei se consigo ou se já não sei regressar, ao meu original ser retroceder.
Este Natal consome-me e à força morre-me.
Não te imaginava assim, apenas te julgava amor de verdade.
Um dia dediquei-te o coração, hoje nem sei, choro-te, imploro-te: Volta! Regressa à pressa para os dias da minha infância e resgata-me os sonhos.
Mata o vil metal e cala a ganância!
Vive-me, vive, preenche-me de esperança.
O mesmo despertar, o mesmo estado sonolento, em pouco varia cada afazer, é quinta-feira, como podia ser qualquer outra. Fosse sábado e era a Feira da Ladra, apinhada, corrupio de gente atarefada em vender o que já foi essencial, hoje coisa banal, vendida por tuta e meia. Mas é quinta e na sua tradição ganha vida nova feira, esta de Carcavelos – e quem sabe outras como ela -, aonde novos e velhos acorrem em busca das melhores ofertas, anunciada aos sete ventos, e a outra tanta chuva, pelo experiente cigano. Amanhã é sexta, não lhe sei a feira. Há a de São Pedro, mas sei-a ao fim-de-semana. É concorrida, serve iguarias e muitas velharias ali se encontram, sob o cenário acolhedor da vizinha e inenarrável serra de Sintra. Por este país fora são tantas as feiras, romarias e procissões, que penso que davam uma por cada dia do ano. Mas hoje é quinta-feira. A última antes de mais um Natal, a penúltima deste rol que serviu 2007 a cada semana, aguardando 24 horas por novos acontecimentos, os eventos que a elegessem para se anunciarem. Véspera de sexta e de uma sequência de 4 dias que se adivinham de muita azáfama, de idas e regressos, beijos e abraços, alegrias e quantas tristezas. Por que é nesta altura que mais dói a solidão. A de quem sofre sem pares num mar de tamanha multidão. Que observa a reunião, mesmo que breve e agendada, mas que fala a muitas vozes e relembra que custa menos viver em sociedade se houver quem nos lembre, quem nos refira com sentida saudade. É quinta-feira, há um ano quarta. Em 2008, ano bissexto, perde a feira e, mais engalanada, veste-se com o rigor próprio de um sábado. É feira da Ladra. Será então futuro, ainda ignorado, estranho desconhecido. Estaremos de novo em vésperas de mais um Natal. E este, que agora se aproxima, será então velho e esquecido, passado, apenas a espaços recordado. Uma escassa memória. Possivelmente a errada: o que ofereci a este, o que dei àquele… Talvez comprado no calor de uma quinta-feira gelada.
(Cont.) Algo que depressa ganhou o voto de concordância também do velho de barbas brancas, que, alertado por um restolhar mínimo, mas ainda assim suficiente para o despertar daquele breve dormitar, se deparou com algo inédito, até para si. Anos de testemunhos curiosos, invejável currículo em situações caricatas, mas nada como aquilo a que agora assistia incrédulo. Animados pelo despertar do intruso de ar simpático e bonacheirão, seis pijamas de flanela, casaco e respectivas calças com motivos variados, mas todos alusivos ao Natal, moviam-se como loucos à sua volta, mangas dadas, numa verdadeira roda-viva de animação e claro entusiasmo. Nada de receios pela presença daquela figura desconhecida (ou talvez nem tanto assim), mas uma perceptível vontade em lhe expressar a alegria própria de quem há muito aguardava a sua visita e nunca tivera esse breve prazer. Apercebendo-se da felicidade que, inadvertidamente, levara àquela mansão - há demasiado tempo esquecida -, logo interiorizou que, mesmo vazios de qualquer conteúdo físico, aqueles seres que ali o receberam de mangas abertas, numa clara manifestação de boas-vindas, obrigatoriamente passariam a ser incluídos na sua rota de visitas. Dito e feito! Daí em diante, todos os anos, na véspera de Natal, os espíritos que povoam aquela casa encantada vestem os seus pijamas de flanela com motivos natalícios e recebem o Santa num ambiente de grande animação e euforia. Ali ceiam, ali convivem, brincam, se dão por todo e de forma genuína, repondo a aura festiva que antes habitara aqueles amplos salões, aquela enorme área hoje entregue a estes entusiastas perpetuadores de um espírito que teimam em preservar, recusando-se a desistir da verdadeira essência do Natal. E foi assim, de forma totalmente ocasional e inesperada, que esta meia dúzia de travessos seres retomaram uma tradição que ainda hoje perdura e à qual não se prevê epílogo. Que recuperaram a verdadeira amizade, a compreensão, a tolerância, atributos que vinham perdendo a sua força em favor de um outro espírito - esse bem mais materialista e nefasto -, que ganhava assim forma e poder a cada novo Natal. A mansão assombrada - que a ser fiel a toda a luz e alegria que emanava mais se deveria adjectivar como “assolarada” - foi assim responsável pelo renascer do velho Natal, do espírito de outrora, o genuíno, aquele que lhe estivera na origem. E agora, é vê-lo. A cada novo ano com redobrado brilho, renovada animação, como que saído de um qualquer programa de face lifting, tipo “extreme makeover”, para mostrar ao mundo que nem tudo tem obrigatoriamente de perder o seu fundo. Que evoluir não pode, nem deve, ser sinónimo de denegrir. Seja a imagem, o conteúdo ou o verdadeiro espírito. O mesmo onde reside aquela réstia do melhor que cada um de nós ainda possui. FIM
(Cont.) E talvez por assim ser, nela se introduziu para tentar um pouco de merecido descanso. Pouco lhe restava de órgãos vitais, senão um sofá já muito puído e empoeirado, umas quantas cadeiras, algumas impossibilitadas de cumprir com aquilo para que foram produzidas, uma ou outra cortina em tentativa vã de obstruir a visão para o seu interior quase despido e pouco mais. Do que fora em tempos, de toda a sua majestosa presença de então, já nada ali havia que estabelecesse uma ligação com esse seu período áureo, de manifesta glória. Nada de nada. Apenas a sobranceria com que ainda se impunha do alto dos seus dois pisos e assim tentava prolongar um respeito que lhe fora injustamente subtraído com o passar dos anos. Mesmo assim, aquele velho e agastado sofá teve o mérito de atrair o corpo pesado do velho barbudo, que nele se confortou para, por breves instantes, cerrar os olhos e deixar-se levar. Breves, mas suficientes para atrair atenções. Mas de quem, se já ali ninguém habitava? Ninguém… talvez. Mas será que seis pijamas de flanela, todos eles com motivos vários alusivos ao Natal, movendo-se vazios de qualquer conteúdo em roda daquele enorme intruso, poderiam ser considerados ninguém? Ninguém físico, talvez. Gente de carne e osso, munidos de cabeça, tronco e respectivos membros, sim. Com essas características, nada ali habitava, de facto. Mas que ali havia uma presença, ou seis, e que a mesma, ou as mesmas, se faziam bem notadas, disso deixara de haver qualquer dúvida. (A continuar...)
Estava prestes a terminar a sua ronda. A ronda de todas aquelas noites. Tantas que já nem se lembrava de quantas. E se nenhuma se repetia, havia, no entanto, um pormenor que propositadamente mantinha inalterado ano após ano: Para o fim, deixava o melhor. Ou, quiçá, a mais inusitada de todas as visitas. Aquela com que fechava cada novo ciclo de fazer chegar a milhões de crianças em todo o mundo a tão ansiada felicidade, propagandeada à boca cheia por esta altura. Uma tarefa árdua, para a qual possuía uma única noite por ano, a noite da consoada. Ainda assim, mesmo com tamanha limitação de tempo, tal nunca fora impeditivo de cumprir com esta sua obrigação de sempre. Cansativa, é certo, mas cumprida à risca, com aquele rigor e profissionalismo que lhe eram, desde há muito, reconhecidos. Mas um ano houve em que se deu a tal “revelação” que veio revolucionar cada epílogo desta sua missão. Um ano como tantos outros, não fosse ter aproveitado a proximidade daquela mansão abandonada para retemperar as suas forças e mais descansado voltar ao trabalho. Julgava ele que abandonada. Se bem que daquele aspecto sujo, deteriorado, desprezado mesmo, se depreendesse essa ideia óbvia, a verdade é que a sua majestosa imponência escondia anos de histórias, de esplendor, de muitas e muitas vidas que nela haviam encontrado guarida segura, de grandes e badaladas festas, bailes, celebrações mil que acolhera nos seus vastos salões, então percorridos pelo fervor de outros tempos. Momentos épicos, hoje esquecidos, hoje apenas e só parte do passado de alguns poucos, daqueles que haviam tido a fortuna de lhe conhecer as entranhas e por lá se sujeitaram a experiências sem paralelo. Mas disso ele não tinha conhecimento. (A continuar...)
Veludo acetinado
Elas dão, elas tiram
Elas confortam, amparam e tudo sustentam
São ferramentas que permitem, gesto mudo que se impõe
Exibem perícia em pormenores, até nos abstractos
Fazem acontecer, mostram argumentos e moldam
Tomam, assumem e dão sequência
Manifestam a vida e dão-lhe coordenadas
De pequenos nadas a tudo, tudo elas erigem
E tanta façanha, tanta conquista
De uma vida cheia, de mão cheia
Finda com traços marcados
Extremos enrugados
Provas vincadas que as desfiguram
As vergam ao peso da idade
Fantoches de cada ser, que foram
Cansadas de actuar, tantos papéis
Tanto que deram, outro tanto que tiraram
Num processo que não é pacífico, nem o podia
Pois que é a vida, é de humano para humano
E esse fere, magoa, constrói e por igual destrói
A eito, sem remorso ou dor no peito
E é sempre com elas, é delas que se serve
Veículo do seu querer, do fazer acontecer
Seja para ver nascer ou ajudar a morrer
É do amanhã que se fala
Em conversas de que nada se sabe
É futuro, é apenas previsão
É bola de cristal em calma convulsão
Brecha no tempo contínuo
Serena madrugada que me amolece o coração
Daqui de onde estou tenho vista
A vista de quem nada vislumbra
Apenas uma leve suposição
Palavra vã em clara antevisão
Tudo rodopia irado
Nesta espiral conturbada
Nada é o que parece
Apenas fachada
Estendo a mão e sinto-me sugado
Ser moribundo para o futuro arrastado
Não sei o que me aguarda
Do lado de lá da fronteira
Nem tão pouco o que me sustém
Me garante o ar
Nesta estrada estafada
Nesta maré que vai e vem compassada
É à flor da pele que as sinto
Saudosas memórias de um tempo que ainda está para ser
Cruel frieza esta do destino
Acenar-me apenas com a ponta deste iceberg viperino
Deixo-me ir
Arrastado pela multidão
Vou e não conto regressar
Eu e cada um
À deriva num revolto mar de suposição
Arrisco a vida
Pois a morte sei-a garantida
Nada vislumbro, não vejo saída
O tempo parou e o sinal mudou
Vermelho, agora em mim encarnado
Quebra-se o elo continuado
Finda-se por aqui todo o labor
De me ver nascer, acontecer
Fui um dia, o quê nem eu sei
Vejo-me angustiado, pois não mais criarei
Contei horas
De um tempo que breve passou
Subtil, em daninho
Pé ante pé
Pezinhos de lã
Não dei por ele
Agora surdo, agora mudo
Pêndulo congelado
A minha imagem a seu lado
Um imenso nada esfumado
Um viver retratado, imóvel
Eu ali sentado
Agora e para sempre parado
Os minutos, em mim imbuídos
Agora em decrescente contagem
Desvanecem-se, despedem-se da sua imagem
Eles que somaram anos
De luta feroz contra os desenganos
Soçobram, em registo latente
Rendidos a que nada é para sempre
As ruas acolhem-me de sorriso rasgado
Estendem-me a mão e presenteiam-me com quem são
Avenidas largas de asfalto violado
Alamedas amplas de um verde estagnado
Cimento aqui, ali, por todo o lado
E eu, ali sentado
Agora e para sempre parado
Foi-se, tudo
A hora da meia-noite, a meia hora para o meio-dia
E eu, ali sentado
A ouvir dizer, pela telefonia
Que chegara a minha hora
Que agora morria