Pela nesga de espaço deixada na parede por aquela estreita abertura, constantemente atravessada por pratos, travessas, talheres, todos usados de refeições recentes, consegui distinguir-lhe o tónus da pele. Braços fortes, mãos a condizer, escravos daquele tom escuro que a levou ali, aos bastidores da vida que se vive passada a espessura daquela parede que lhe serve de muro. Fosse o seu tom de pele outro e estaria ela ali, na face obscura da existência? Pois que deste lado de cá, não vejo senão caucasianos, seja a servir, seja a beneficiar desse serviço simpático, acolhedor, interesseiro no seu sentido comercial. Quero crer que a cor aqui não interferiu na sua escolha para todo o dia levar as mãos negras ao fundo daquele alguidar de água acastanhada, para dele recolher facas, garfos, colheres. Que não esteve na base da sua selecção para lavar cada travessa gordurosa, cada prato ainda com resquícios do que terá sido banquete com que nunca se irá deliciar. Ali escondida da vida, repõe a ordem inicial de cada prato, travessa, talher. Volta a ressuscitá-los para nova série de tarefas que, incansáveis como ela, desempenham sem contestação. Pessoas entram, pessoas saem e ela ali se dedica à missão para que um dia nasceu. Mal sabia ela. Quem sabe seja feliz com o simples facto de todos os dias ali poder sentir-se útil. Mas a troco de quê? De um mísero pagamento, sempre escasso ao fim de cada mês? Sem uma palavra de apreço, de motivação, pois que não se concebe nenhuma possível face às tarefas que desempenha. Olhei-a por breves instantes e pensei no que será a sua existência. Nunca a tinha observado e nem sequer desconfiava da sua presença naquele minúsculo espaço. Ou da sua essencial tarefa para o normal desempenho do restaurante que serve. Talvez ao fim do dia saia da toca e sonhe em viver por instantes do lado de cá. Ou simplesmente regresse a casa sozinha e lá repita o que todo o dia fez, mas para os outros. Até pode ser que seja feliz, mas não pude deixar de pensar se será realmente assim. Se aquilo que ali presenciei terá sido apenas mais um capítulo, mais uma vida, mais uma alma aguardando por melhores dias.
Pela manhã tudo parece nublado. As pálpebras pesam, sujeitas à força gravitacional do sono sobre as órbitas desta e de todas as terras imaginárias. Por que nesse instante acordamos de um estado dormente profundo, retemperador, que nos restituiu forças e nos incute nova motivação para seguir em frente. Até pode ser que sim. Mas nessa altura precisa, aquela em que usamos de toda a força que nos falta e que não sabemos onde ir recuperá-la para abrir um olho que seja dos dois que se quedam ali, preguiçosos, nada disso nos parece razoável. Mais queremos que nos deixem em paz, a acordar devagar, muito devagarinho, como se todo o mundo desabasse ao primeiro sinal de pressa ou de descontrolo involuntário. Não existe sensação como aquela, que nos consome pela hora de acordar, acto a que somos sujeitos por obrigação e nunca de boa vontade ou iniciativa própria. Aquele é um momento crucial do dia, pois pode condicioná-lo efectivamente ao longo das horas que ainda nos disponibiliza. Do modo como acordamos depende o nosso mood, a nossa disposição, toda a nossa disponibilidade mental para o resto do tempo que sabemos ir permanecer acordados. Pois que no seguinte, nova alvorada lhe dará continuidade. Por isso é de evitar acordar com os pés de fora. Mais que não seja para impossibilitar o estado irritadiço que lhe está associado de tomar as rédeas da nossa disposição e fazer desse um período de tempo apenas para esquecer. Bom mesmo é poder ficar na sorna. Naquele dorme, acorda, dorme, que mais não é que um encadeado de preguiça e sonos em atraso acumulados dias a fio. Mas para isso existem alguns requisitos fundamentais, onde se incluem ser dia de descanso (vulgo feriado ou fim-de-semana), não existirem planos que impliquem alvoradas fora de propósito ou a não existência de filhos pequenos, sendo que isto do ser pequeno é muito, bastante mesmo, relativo. Cumprindo com estas formalidades, a sorna é possível e dormir mais um bom par de horas, para além daquelas que servem de base ao comum dia de trabalho, torna-se real. É o acordar com tempo, o encarar o dia devagar e sem sobressaltos, que faz com que tudo se mova ao seu ritmo, sem acelerações escusadas ou stresses de todo inadequados. É essa a manhã perfeita, o acordar de sonho. E se lhe juntarmos uma mulher com o desejo premente de saciar as suas necessidades de um certo foro que aqui me escuso a revelar, então estaremos muito perto de lá chegar, ao reino do paraíso em terra. Pena é que algo tão simples como um acordar pacífico, como todos deveriam ser, seja algo tão raro e cada vez menos comum na vida de cada um. Por que se é para acordar aos repelões e recordar o acto de dormir como um pesadelo de que se desperta, então mais vale não desperdiçar tempo a fazê-lo. Principalmente por que, tempo para dormir, é o que não nos vai faltar quando batermos a bota.
Hoje é dia de azar. Vira essa boca para lá! Qual azar qual quê! Lá por que neste mês o dia 13 logo foi coincidir com uma sexta-feira, isso não tem que ser obrigatoriamente sinónimo de dia não. A começar por que é sexta-feira, véspera de fim-de-semana. Que azar pode haver nisso, já com o cenário de dois benditos dias de descanso no horizonte? Se estivéssemos a falar de uma segunda-feira 13, isso sim, seria um azar descomunal, mais que não fosse por que, pela frente, estariam 5 longos e penosos dias de trabalho, quase sempre enfadonho e sem atractivos especiais. Mas ainda assim, azar, azar, era não ter emprego. Era acordar todos os dias, sextas-feiras 13 ou não, e não ter que fazer, como se sentir útil ou saber que alguém necessita dos seus préstimos, do seu conhecimento, para elaborar uma determinada tarefa. Ficar fechado entre 4 paredes a pensar apenas em formas de ludibriar o cada vez mais complexo processo de garantir o apetecível subsídio de desemprego ou, na falta do mesmo, a desesperar, quem sabe com um curso superior tirado (mesmo que seja na Independente!), por não ver rentabilizados os custos e tempo despendidos para o conseguir. Mas, mais grave ainda, é o desespero de não ver um ordenado a cair na conta bancária, se a tiver, todo o fim do mês, por mínimo que esse possa ser. Ou ainda pior. Ter família, filhos, contas para pagar e não ter como responder às imensas solicitações de uma suposta existência comum, da forma que certamente seria a ideal. Por vezes a vontade só não chega. É necessária uma imensa persistência, uma luta hercúlea para levar adiante as pretensões, desejos, ambições, que nos servem de consolo face ao resto. Face aos imponderáveis, aos imprevistos, que se escondem em cada esquina e, por isso, muitas vezes são confundidos com o tal de azar. Aquele que serve invariavelmente de bode expiatório a tudo o que, a nossos olhos, nos é inconveniente, num despropósito que nos abranda o ritmo, desvia do rumo que seguíamos ou, abruptamente, o interrompe, sem aviso. Por isso o detestamos e dele fugimos como o diabo da cruz. Na minha modesta opinião, isso do azar não passa de um mito, de mais um produto de marketing incentivado e massivamente comunicado, no sentido de incutir medos e receios onde eles nem sequer existem. Pois que se a sorte somos nós que a fazemos, tudo se deverá resumir ao empenho e dedicação postos em prática, para que a mesma ande sempre por perto. De preferência, de braço dado connosco. E por que mais vale prevenir que remediar, que tal aconteça mesmo num dia como o de hoje, uma sexta-feira 13.
Daqui sigo para ali, se tudo correr bem por lá permaneço uns tempos - não muito, pois tenho de regressar àquele outro local, o ponto de partida -, mas conto um dia lá voltar, quem sabe. Regressado, fico por um período indeterminado, pois sei que tenho de me deslocar até acolá para fazer algo que ainda não decidi bem, mas que tem de ser feito. E é melhor que seja agora do que mais tarde, pois nunca se sabe quando voltarei a ter tempo ou disponibilidade para o fazer. É que isto de planear não é tarefa fácil. Fácil é viver sem agenda, sem esquemas e marcações a serem feitas a compasso ritmado. Agora isto, depois aquilo, sempre num contínuo interminável, tal e qual uma espiral que volta e meia nos relembra que não há tempo a perder e o caminho é em frente. E de pensar que a causa de todo este cenário somos nós próprios. Mas isto não dá para ficar aqui na conversa, pois ainda tenho muito que lhe dar hoje. A determinada hora largo daqui, vou até um outro espaço para fazer o que o tempo disponível me permitir. Pois que enquanto aqui estou, a protagonizar tarefas que não são compatíveis com essas outras, não tenho possibilidade de o fazer. É assim a vida, sempre em corrida, acelerada por norma, de um lado para o outro, a pensar no que se vai fazer enquanto se faz qualquer outra coisa, igualmente urgente, igualmente inadiável. Pois que tudo o é, à excepção do que deveria realmente sê-lo, pois é o mais importante, tipo a família, os amigos, o investimento numa qualidade de vida que nos foge por entre os dedos. Tudo nos escapa, de nada somos possuidores. Urgente mesmo é viver cada segundo que nos é concedido, mas que desperdiçamos em invenções que depois só contribuem para mais e mais infelicidade, desilusão, sensação de vazio. Por que não largar tudo da mão, deixar para trás aquilo que é invariavelmente igual e partir à descoberta da vida como ela realmente é, ou deveria ser, para cada um de nós. Mas o medo de falhar aos compromissos é maior. De não estar à altura de assumir as responsabilidades que ficam bem aos olhos dos demais e nos garantem permanência na dita sociedade. Por isso são poucos os que dão esse passo em frente e resolvem viver longe desta prisão que é cada dia da nossa inócua existência. Espero um dia poder seguir-lhes as pisadas. Era bom. Como num sonho feito realidade e do qual nunca mais tivesse que acordar.