Triste sina
Se por um lado a esmagadora maioria das ditas pessoas sãs de espírito e de mente não apreciam conhecer de antemão o desfecho de uma história, por outro, quantas e quantas dessas mesmas pessoas procuram desesperadamente saber o que lhes reserva o destino. Como vão ser daqui por uns anos, ricos, felizes, pobres, doentes? Será que, tratando-se da sua própria vida, esta já desperta interesse ao ponto de lhe saber o fim antecipado? E se for possível descortinar o futuro? Que resta depois para fazer? Tentar à força contrariá-lo? Ou tentar desde logo tudo, para que esse se concretize ainda mais rapidamente? É um pau de dois bicos, este do amanhã. Por isso, e no que só a mim me diz respeito, faço por respeitar a ordem natural das coisas e deixar que esse amanhã se me apresente apenas na devida altura, ou seja, amanhã. Senão deixaria de o ser e passaria a ser já hoje. O que deixava de fazer sentido, pois andaria eternamente na perseguição do dia de amanhã sem nunca chegar a perceber o tempo presente. Por tudo isto, compreendo a dor e o desânimo de quantos diariamente contribuem para a nossa satisfação, idealizando, pensando, criando, finais e desfechos de todas as espécies e feitios, para as inúmeras histórias com que nos deliciamos no cinema, na televisão, no portátil. Para esses pobres coitados, o fim é algo que nunca lhes acontece de surpresa. Calhou-lhes em destino serem eles os detentores de uma magia especial. Os responsáveis por todos os finais que, gostemos ou não, concretizam cada filme, cada série, cada episódio, daquilo que é tido como a vida ficcional que acompanha a par a nossa outra vida, a que sentimos na pele. Como vidas duplas: a que vivemos e a que observamos, do lado de lá do ecrã, puramente ficção. Ou será que nem tanto? Pois convém não esquecer que essa outra vida é igualmente produto da mente criativa de um ser humano que, como tal, também ele se debate a cada segundo com uma vida que é real. Até que ponto consegue ele(a) separar uma da outra? Aquela onde qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência (ou deveria ser) e a outra. A que é comum a todos nós, e onde aquilo que é, é-o efectivamente. A tal em que o sangue quando jorra, jorra de facto, a dor quando dói, dói de facto. Sem truques, sem efeitos especiais, apenas como ela é, naturalmente. Para essa, é pena não existirem também seres dotados do poder de criar o fim desejado ou mais condizente para cada situação. Mas depois, que seria dos noticiários, dos jornais sensacionalistas, da desilusão, do desencanto próprio de um final indesejado? Que seria do apetite voraz do homem pela tragédia que ele mesmo cria, do desejo pelo sofrimento, pela miséria, pela desigualdade, que ele mesmo ajuda a fomentar? Seria possível um mundo assim? Um mundo incapaz de coexistir com a desgraça? Esse sim, era o verdadeiro final feliz. Aquele que, na realidade e por enquanto, ainda só existe em ficção.