Um merecido Natal (Parte 1) - Um conto de Natal
por migalhas, em 16.12.05
A noite estava fria. Mais fria ainda do que as dos últimos dias. Uma vez mais a neve fazia a sua aparição em fofos flocos que logo se desfaziam ao alcançarem o chão. O asfalto rebrilhava a cada novo passo que dava e nele reflectiam-se as poucas luzes que o acompanhavam naquele passeio nocturno. Mãos nos bolsos, cachecol enrolado à volta do pescoço e um velho gorro de lã a cobrir-lhe a cabeça, ainda assim eram adereços incapazes de evitar que o decidido e gélido vento do norte lhe flagelasse o corpo que, a custo, tentava colocar a salvo da sua ira. Rajadas fortes, e cada vez mais insistentes, empurravam-no rumo às trevas, proporcionando-lhe um impulso artificial que o fazia avançar mais rápido a espaços. Nada nem ninguém se avistava há mais de uma hora de viagem. Só mesmo um louco se atreveria a sair à rua debaixo de um temporal daqueles. Olhos fixos na estrada deserta, queixo enfiado fundo na gola, que agora parecia tudo menos alta, o seu campo de visão cada vez se encurtava mais e mais, tal a intensidade com que vinha aumentando a queda de neve. A continuar neste ritmo, pela manhã seguramente a paisagem seria bem diferente. Deixara a sua pequena, mas acolhedora, cabana em madeira ainda antes do anoitecer, pois queria atingir o seu destino às primeiras horas do dia seguinte. Tinha ainda muito para palmilhar e disso já se ressentiam os seus pés gelados, a que nem dois pares de meias de lã, agora ensopadas, serviam de aconchego. As condições iam piorando, mas nada o demovia dos seus intentos. Prometera fazer chegar uma mensagem em mão, e em mão ela seria entregue. À medida que o tempo passava, e se reduzia a distância que o afastava do seu destino, mais dormente o seu corpo se apresentava. A situação inverteu-se, no entanto, com a chegada dos primeiros laivos de uma luz diferente, mas bem-vinda. Com ela, também a queda de neve abrandava de intensidade. Em breve regressavam os pequenos e espaçados flocos, antevendo a mudança de turno com o sol que se adivinhava brilhante para daí a mais umas horas. Tom esfregava as mãos e nelas fazia incidir o seu bafo quente na esperança de as despertar. Ao olhar em seu redor, pôde deparar com uma visão que, embora não lhe fosse inédita, era-o sempre deslumbrante. A perder de vista, estendia-se um manto alvo a que nem a luz se associava, logo reflectida com redobrada intensidade. Os campos vestiam-se com uma roupagem densa e sem padrões, num plano único e monocromático de cândido e pacificador povoados. Por momentos, sentiu-se tentado a vaguear pela sua consistência fofa, esquecendo o frio e a missão a que se propusera. A sensação de liberdade imensa, o sossego, o silêncio por nada quebrado, transmitiam-lhe uma paz que claramente era o reverso daquilo que ainda há pouco experimentara. Abrandou o passo e estacou. Descobriu mais os olhos e pôs-se a admirar. Era de facto bela aquela região. Tirou o gorro, que sacudiu batendo com ele nas coxas, e enrolando-o guardou-o no bolso das calças. O sol ascendia ao seu palco e começava desde logo a brilhar intensamente. Não que a temperatura ambiente se ressentisse disso, mas a luz proporcionada pelo astro rei pedia que se fizesse uma pausa para se assistir àquele espectáculo, pautado quase única e exclusivamente pelo branco. (Continua)