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TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

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Pára, arranca.

por migalhas, em 27.09.05
Pára, arranca. Pára, arranca. Engreno a primeira, avanço escassos centímetros no alcatrão quente e quando me preparo para desenvolver uma segunda, nova paragem. Paro. Espero. Quase desespero. Olho pelos vidros corridos até acima, para melhor desfrutar do fresco artificial proporcionado pelo providencial ar condicionado, e lá fora observo outros e outras como eu: à beira de atingirem o desespero. Os olhares são quase de súplica, de entediante impotência face ao impasse do momento, repetido vezes e vezes em doses já quase a roçar os limites do humanamente tolerável. As filas de veículos estendem-se para lá do que a vista alcança. O calor abrasador vê-se em ondas de ar quente que se libertam do asfalto ou dos tejadilhos e capôs de cada carro, proporcionando uma imagem distorcida e trémula do que está para diante deles. No rádio, as notícias sobre a situação do trânsito não são animadoras. Entre outras coisas, dão conta de filas intermináveis em ambos os sentidos. As avarias acumulam-se. De quando em quando, um novo carro encosta à berma e mostra o frenesim dos seus quatro piscas, orgulhosos em alertar para um sobreaquecimento tornado realidade. Para esses condutores, a hora é de desespero efectivo. A ténue linha que lhes permitia estar ainda do lado de cá, esbate-se nesse momento e coloca-os nas mãos da pré-loucura. Passo por eles e olho-os com alguma compaixão. Pobres coitados. Se fosse comigo… nem é bom pensar nisso. Avanço mais uns centímetros e consigo meter uma segunda. Ainda não é desta que a terceira tem oportunidade de se evidenciar. Volto a parar. Olho à volta. Tudo em meu redor beneficia de uma aura doentia, como se o céu estivesse a escassos centímetros das nossas cabeças, fazendo pressão sobre os veículos contra o alcatrão amolecido pela extrema temperatura. 30 minutos certos para percorrer uma distância ridícula. Nem um quilómetro perfiz neste pára e arranca da última meia hora. Dá que pensar no que será daqui por mais uns aninhos. Prevejo que não muitos. Pois que a situação já se encontra insustentável que chegue, mas com a tendência para piorar, obviamente. Penso na minha filha. Que irá ela encontrar quando tiver idade para conduzir ou quando tiver independência para possuir um carro seu? Haverá então espaço nas povoadas vias de circulação automóvel para o crescente número de veículos que se antevê? Não estarão elas já saturadas de movimento ou há muito rebentado pelas costuras? Ou será que nessa altura já nem são necessárias vias físicas para se circular? Ouço buzinar. Um espaço relativamente deserto de carros preenche o campo de visão imediatamente à minha frente. Engreno a primeira e avanço. Avanço até conseguir atingir as quatro das cinco mudanças de que disponho. Volto a abrandar, esperançado de que não seja necessário retomar o ponto morto. Esperança vã. Agora sei que é irremediável o meu atraso. Saí com uma antecedência que julguei suficiente para chegar uns minutos antes da hora marcada. Mas agora vejo ser impossível sequer cumpri-la. Lembro-me do filme “Um dia de raiva” e dá-me vontade de imitar o personagem interpretado por Michael Douglas. Fantástico desempenho aquele. Olho a estrada à minha frente e não vejo senão carros parados. Inanimados. Como todos nós. Impotentes face ao exagero de tráfego acumulado. Aqui me encontro eu. Naufragado num mar de chapa, de gente fatigada, sem ânimo, com tanto para fazer e no entanto tão pouco tempo. Olho em frente e não descortino solução. Apenas sei que não vou cumprir um horário combinado com tanta antecedência. Algo que devia deixar-me chateado. E, no entanto, isso não acontece. Limito-me a olhar a estrada à minha frente, preparado para arrancar suavemente ao sabor de uma primeira. Como se houvesse alternativa.

30 olhares

por migalhas, em 26.09.05
Contos.JPGPara quem quiser assistir ao lançamento desta compilação de contos de novos escritores portugueses, pode fazê-lo na próxima quinta-feira, a partir das 19h00, no Farol Design Hotel em Cascais. São 30 olhares muito particulares que ganharam vida a partir de uma frase que serviu de premissa a todos; "Cruzámos os nossos olhos em alguma esquina...". Um desafio nacional lançado pela Coolbooks, que posteriormente editou em forma de colectânea os 30 por si eleitos como mais significativos. Este é o livro, o espírito foi livre e a vossa apreciação a cada um deles é certamente ansiada pelos respectivos autores. O livro já se encontra nas livrarias à vossa espera. Leiam-no e fiquem com uma pequena ideia dos novos valores da nossa literatura. A minha contribuição encontra-se na página 103 e intitula-se "A dança do sentir". Desfrutem.

Histórias

por migalhas, em 22.09.05
Passeava eu descontraidamente pela rua algo deserta, quando me deparei com uma massa disforme, mas compacta, que me obstruía o caminho. Primeiro pensamento: contorno-a e vou à minha vida; segundo: paro e analiso-a; terceiro: salto-lhe por cima e aterro do outro lado, seguindo o meu caminho. Tivesse eu sido um pouco mais atento na observação e certamente me aperceberia de que passar-lhe por cima dificilmente podia ter sido sequer equacionado. E porquê? Porque aquela massa de uma coloração rósea, forma arredondada, embora irregular, mas de uma dimensão apreciável, invalidava obviamente essa opção, impossibilitando-a. Ainda que tentasse o salto, mesmo tomando algum balanço, aterraria certamente sobre parte da sua superfície que se espraiava mais e mais, numa viscosidade que crescia à medida que se confrontava a céu aberto com os raios de sol abrasadores. Cheguei a pensar tratar-se de uma enorme pastilha elástica inadvertidamente jogada para o chão. Mas só se tivesse sido pertença de um qualquer ser gigantesco, o que me pareceu pouco provável. Olhei em redor e subitamente já nenhuma das opções era viável. Aquela massa espessa tomara por completo conta de toda a calçada e já nem à volta conseguiria passar por ela. Toquei-lhe ao de leve com as pontas dos dedos e estes colaram-se-lhe de imediato, originando uma imediata reacção de repulsa, de nojo. Ainda assim, pensei em levar a ponta dos dedos à boca para me tentar aperceber do que tinha ali à minha frente, impedindo-me de prosseguir com a minha vida. Seria doce, salgado, azedo? Não o fiz. Mas também porque me vi na obrigação de tomar uma decisão célere que permitisse a minha imediata sobrevivência. Vindo não sei de onde, um enorme sapato, ou melhor, a sua gigantesca sola, preparava-se para aterrar bem em cima de mim, não fosse o providencial aviso resultante da sua súbita interposição entre a luz emanada pelo sol e o pedaço de calçada que se preparava para pisar. Precisamente aquele onde eu me encontrava, fazendo contas à vida que quase perdia sem sequer dar conta. Corri veloz para um dos lados e fi-lo dando o máximo que me era permitido, atendendo à largura daquele inesperado objecto. Um voo final para o asfalto, como medida preventiva face ao perigo eminente, revelou-se uma decisão acertada. Ao estremecer o chão em seu redor, pude constatar que pouco mais de uns escassos milímetros haviam afastado aquele pesado bloco achatado do meu corpo, agora estendido ao comprido no asfalto quente. Depressa me ergui, para olhar convenientemente aquela ameaça à minha integridade física, e não só. Com a mão em forma de pala - devidamente colocada um pouco acima dos meus olhos agredidos pela intensidade do clarão que o intenso sol sobre mim desferia – de forma a proporcionar alguma sombra que me permitisse olhá-lo bem de frente – se é que assim o posso dizer -, foi com indescritível admiração que me apercebi da realidade dos factos. Ou seja, estivera a uma distância mínima de ser esmagado pelo pé de… uma pessoa adulta! O tal gigante que, momentos antes, considerara uma enorme improbabilidade, bem ali, na minha frente. Sacudi as roupas sem nunca dele desviar o olhar e com o mesmo segui-o até onde me foi possível. Em breve, outros como ele se lhe juntaram e não tardou que a rua, antes deserta, fosse agora percorrida cima abaixo por uma multidão de seres enormes, entre os quais eu me movia com compreensível dificuldade. Tornara-me pequeno, insignificante, um ser digno da mítica Lilipute, a cidade dos nossos tempos de criança que então povoava o nosso imaginário. Pois que agora, tornara-se uma cruel realidade para a qual não me mostrava minimamente preparado. Mesmo escondido, depressa me apercebi dos enormes perigos que corria face a seres antes inofensivos, agora ávidos da minha tenra carne. Pássaros, ratos, formigas, baratas, tudo se me apresentava obstáculos difíceis de contornar. Como a enorme pastilha que momentos antes despoletara todo este episódio. Estava agora na presença de uma enorme estante de livros - de uma casa a que acedera através de um saco com compras - e após me certificar da ausência de cães ou de gatos nas redondezas, trepei ao mais alto que consegui e descansei finalmente, permitindo-me algum tempo para pensar. No que fazer, essencialmente. Em como me safar daquele imbróglio em que me encontrava sem sequer imaginar como, nem porquê. De repente, fui assaltado por um sobressalto. Alguém entrara na sala e não querendo comprometer a minha camuflagem, resolvi abrigar-me no interior de um livro que se me apresentava entreaberto. Entrei apenas para me esconder, mas em breve percorria as suas linhas de texto até me fixar numa bela imagem que o ilustrava. Quando voltei a mim, só sei que me encontrava no coração de uma bela floresta, carregando no braço uma cesta com uma espécie de lanche, envergando um estranho vestido vermelho com capuz e encaminhando-me na direcção de uma casinha que mais parecia saída de um qualquer livro para crianças. Não liguei. Retomei o andamento e segui com a minha vida.

Lá bem no fundo…

por migalhas, em 21.09.05
regaleira4.jpg
Lá do fundo, bem do seu fundo distante que apenas por dedução me permitia assumi-lo, um ruído surdo fazia-me chegar um parecer que quase diria imaginado. Enorme, deslumbrante, abissal na sua imponência em forma e feitio, aquele espaço imperturbável impunha o respeito dos grandes empreendimentos da humanidade. A que se juntava o misticismo, o receio pelo desconhecido, a vénia com que, inconscientemente, lhe louvávamos a postura grave e ainda assim serena. A reverência implícita, a submissão que o simples olhar determina como uma regra a que livremente nos sujeitamos, o temor a que o silêncio circundante nos verga. Não é nova esta sensação, como nova não é a estrutura que o propícia. Olhar o seu abismal fim do topo deste vertiginoso ponto de partida, mexe com a mais bem implantada estrutura. Não há alicerce que não balance, coração que não dispare ou olhar que não se aguce, com laivos bem perceptíveis de espanto nele espelhado, de cada vez que o contemplamos com a exigida deferência. A descida que nos arrasta para as entranhas da terra húmida e à qual nos entregamos, embora sempre receosos das suas intenções, em pouco tempo nos leva às trevas, que no seu ventre experimentamos como algo nunca antes sentido. Se a espiral nos persegue desde os passos que iniciámos muitos metros acima, já a labiríntica visão de grutas plenas de desconhecido apenas ali nos confronta. Depois é o tremor que se apodera dos nossos corpos, as lembranças do tempo que se quedou naquelas paredes ressudadas, o peso incontornável da história dos Cavaleiros Templários que ali se aventuraram e que em cada esquina nos persegue como assombrações desejosas de se materializarem. A cada passo uma nova baforada de ar quente é expelido, para de peito feito logo se digladiar com o frio mórbido que lhe dá as boas-vindas. Mas como tudo o que se inicia também esta obra mágica ganha um epílogo digno do que a antecedeu. Acatamos como seus servos, cada ordem sua em prosseguir. Não que o receio nos possibilite voltar atrás, pelo que nos consciencializamos de que é a seu mando que seguimos os caminhos tantas e tantas vezes trilhados no passado. Sempre adiante. Pois o relevo continuado e sem mácula que nos cobre a pele por todo, não se deve somente às amplitudes térmicas vividas momentos antes. Uma vez no exterior, voltamos a experimentar o toque sedoso dos raios quentes do sol que sempre soube que o voltaríamos a olhar com este mesmo ar: de uma saudade que não admitimos mas com que sonhámos mesmo sem querer. Desde que olhámos o fundo daquele poço profundo, que nos toca antes mesmo de lhe sentirmos o bafo cavernoso só ao da morte comparável.

Boas notícias ou mais areia para os olhos?

por migalhas, em 19.09.05
Não é todos os dias que somos confrontados com notícias animadoras. Notícias de excepção, que podem representar mesmo um primeiro indício válido de que a paz mundial começa a ser vista como prioridade na cabeça dos dirigentes políticos mundiais. Numa súbita mudança de atitude que claramente contrasta com a obsessão pelo conflito continuado, com as consequências daí advindes. Ouvir e ler que o Governo da Coreia do Norte anunciou hoje que vai abandonar o seu programa nuclear, deixa-me obviamente satisfeito e esperançoso, mas da mesma forma cauteloso. Pyongyang promete desistir de todos os programas nucleares e regressar, logo que possível, ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear. Passadas ao papel as assinaturas dos dirigentes envolvidos neste complexo processo, materializado em forma de acordo, fica a esperança de que as acções se sobreponham às palavras agora por todos partilhadas. Que não se ouça daqui por uns tempos aqueles que agora deram a sua palavra, de que afinal não foi bem aquilo que quiseram dizer ou que se sentem no direito de recuar nas suas intenções porque do outro lado alguém faltou aos seus compromissos. É que de intenções estamos todos nós cansados. E neste caso específico do uso da energia nuclear para fins que não os desejados, a coisa fia muito mais fino. Pois em causa está todo o futuro deste nosso planeta, cada vez mais desiludido e destroçado com os efeitos provocados pelas acções dos seus habitantes. Ou melhor, dos seus governantes.

...

por migalhas, em 16.09.05
"A escrita é um meio de comunicação ímpar e o inconsciente revela-se aí tanto como nos sonhos"

Alberto Vaz da Silva - Grafólogo

Último reduto

por migalhas, em 15.09.05
Na orla da ilha, naquele ponto em que a areia branca e fina como pó se banhava no mar chão de um turquesa quase impossível, um caixote feito de tábuas de madeira, agora encharcadas, repousava. Chegara ali a mando da maré, que agora recuara para lhe consentir algum espaço que lhe permitisse finalmente descansar. Repousar da viagem que fizera à deriva de um mar, ora revolto, ora calmo e imperceptível, e que de tão longa já nem sabia os crepúsculos matutinos a que assistira. Agora ali, estática, imóvel, parecia começar a querer demarcar o seu território ainda recente, aconchegando-se mais e mais na fina areia de cada vez que a suave ondulação a tocava como a querer reclamar o que fora seu durante tantos e tantos dias a fio. O sol lançava as primeiras chispas de um calor prestes a repetir-se tórrido e a cada nova investida contribuía para que aquela madeira sofrida experimentasse os primeiros momentos de secura. Como caixote, poucos atractivos possuía. Era igual a tantos outros, com a diferença de que este era viajado. Origem não se lhe conhecia, mas aqui encontrara o seu destino a que não fora alheio o extenso oceano com as suas correntes e marés. Numa praia que muitos apelidariam de paradisíaca mas que nem por isso conhecia outra vida senão a da farta vegetação do seu interior ou da fauna que por ali se dera e que hoje reinava num exclusivo a que não se adivinhava termo. Tirando estes elementos privilegiados, apenas o mar tinha acesso ao seu espaço físico. Embora confinado ao limite do seu contorno, para lá do qual não se aventurava ou, se o fazia, era em virtude da fúria com que, por vezes, Neptuno contra ela impelia as suas vagas. Vista pelo olhar acutilante das gaivotas que aqui e ali pontuavam os céus com os seus bailados acrobáticos, a ilha desenhara uma mancha escura na clareza do mar que a circundava, numa forma circular quase perfeita. Do lado norte agreste, com as suas falésias escarpadas, revelando-se mais bela para sul de onde se destacava a exclusiva ligação suave com o mar vizinho: a praia. Única porta de entrada possível, por onde, sem pedir licença, o caixote de madeira se introduzira e agora se propunha a ficar. Do areal albino brotavam de forma desordenada alguns rochedos dispersos, que davam ao seu todo a ideia de um rosto vítima de acne que lhe roubava a hipótese de brilhar em pleno. Também algumas palmeiras se vergavam sob o peso do sol majestoso que, por ali, era dono e senhor a tempo quase inteiro. Na área da praia reinava uma calma difícil de descrever. Nada nem ninguém alguma vez experimentara tamanha brandura, tamanha serenidade. Um estado virgem que, desconhecido de qualquer humano, se mantinha como último bastião ou derradeiro reduto dos tempos em que o mundo era ainda uma noção recente. Talvez aí repousasse a razão de aqui ter finalizado a sua longa viagem. Um caixote, algo tão simples como um caixote de tábuas de madeira incertas que talvez em tempos tenha sido de alguma beleza, que representasse, como um ícone, a única prova da humanidade a que fora dada permissão para aqui permanecer. Como os outros privilegiados. Que, no seu coração, no seu âmago, desfrutavam já das dádivas deste templo sagrado. Tudo o resto com origem no animal homem era aqui, neste genuíno paraíso, impedido de atrever-se. As forças da natureza haviam há muito assumido o governo deste pedaço de céu na terra e só uma força maior – que sabemos não existir – as poderiam destronar. O caixote de madeira, tosco, gasto e desprovido de toda a beleza e utilidade que um dia tivera, terminara aqui a sua longa travessia. Aqui permaneceria, enquanto a ilha o quisesse. Ou até que o devolvesse ao mar ou este o reclamasse e ganhasse a contenda que o opunha ao areal. Estava agora entregue a outros. Como sempre estivera. Não era novidade. Para ele, para toda a humanidade.

Por breves momentos

por migalhas, em 12.09.05
E depois alguém me dizia insistentemente que aquele era o meu fim. E empurravam-me e apertavam-me o braço com força e teimavam em olhar-me nos olhos gritando a viva voz que não tentasse sequer contrariar o que me estava destinado. A confusão generalizou-se e depressa eram incontáveis as vozes que ecoavam na minha cabeça, numa amálgama de palavras cruzadas que nada diziam. Cerrei os olhos, na esperança de que tal me permitisse uma fuga desesperada. Uma ausência premeditada. Uns instantes absorto da dura realidade que se me apresentava palpável, suportada por aquele reboliço crescente e agora jamais ausente. Encontrões, gritos, ofensas verbais, numa claustrofobia que me preenchia a cada segundo e que se avolumava em meu redor, comprimindo-me o pensamento, oprimindo a escassa disponibilidade para raciocinar. Senti-me sufocar. Uma pressão forte tomou-me conta do coração, invalidando-me de sentir algo mais que a angustiante ânsia de me libertar, num desejo reprimido de poder voltar a sentir a suave brisa que só os homens livres experimentam e a ela se entregam de corpo e alma. Agora o tempo acelerava. Há medida que escasseavam, os poucos minutos que me distanciavam daquele epílogo cada vez mais previsível passavam por mim fulgurantes, impiedosos, céleres, como os homens e as mulheres que circulam pelos movimentados centros cosmopolitas, sabe-se lá em busca de quê. As fontes latejavam-me num ritmo que depressa me agoniava ao passar pela multidão vibrante, extasiada e sedenta de espectáculo. Ladeado por entroncados protectores da minha figura cada vez mais liliputiana, confrontei-me com a escadaria, último obstáculo que antecedia a minha subida ao pedestal que tanto receava. O público ruidoso entoava cânticos e bradava sons de revolta, de fúria latente prestes a eclodir. Era chegado o momento. Por trás de mim senti aproximar-se, como uma enorme e imponente sombra, a figura assustadora do carrasco. O colete de couro que envergava e que deixava expostos dois volumosos troncos que lhe serviam de braços, era incapaz de suster o nauseabundo odor do suor que, como uma segunda pele, reflectia nele dias e dias de execuções consecutivas, vividas em plena excitação. O sabor de matar, de ser responsável pelo verter de litros de sangue quente e espesso, de poder admirar em primeira mão o corpo ainda inconformado com a morte, debatendo-se em espasmos finais de uma luta perdida pela sobrevivência impossível. O prazer de ver rolar cada nova cabeça pelas tábuas de madeira impregnadas de líquido vital ressequido, mas constantemente rebaptizadas por novas doses de vermelho vivo do momento. Ergueu bem alto o enorme machado com a ligeireza de quem eleva no ar um maço de algodão. Um reflexo de luz cintilou na extremidade da lâmina refulgente como que a dar o sinal há tanto aguardado. A resposta pronta da multidão ao rubro proporcionou-lhe nova descarga de adrenalina. Consciente do seu poder, dono e senhor da vida que a seus pés se penitenciava, chorosa, joelhos no palco onde jogava a sua efémera existência e cabeça pendente num molde sujo, tantas vezes solicitado, aquela figura possante grunhia com a possibilidade de mais um golpe certeiro. Nas suas mãos repousava o destino daquela triste figura que agora brindava os seus derradeiros momentos com uma visível mancha escurecida junto às partes baixas. O medo final, o desespero, o último suspiro, tantas vezes imaginado, agora inevitável. Um derradeiro som que se abafa, uma confusão que se faz tranquila e a paz. Por fim, o fim. É a loucura de quem hoje assiste, sabendo que amanhã será também ele alvo da chacina que alimenta a fome daquela horda de sanguinários. Perfeito. Um plano digno dos melhores compêndios. Dos confins do espaçoso “set” ouve-se uma voz que ordena “corta”, logo seguida de um sonoro “perfeito! Excelente take”. Segue-se um curto intervalo de quinze minutos para molhar as gargantas sequiosas, trocar umas ideias sobre o plano seguinte, retocar as maquilhagens. Pois que o espectáculo não pára e o filme tem prazos a cumprir. Por isso, “back to business” com novo chamamento de guerra: luzes! Câmara! Acção!

Quantas vidas vale um minuto?

por migalhas, em 07.09.05
Um minuto é pouco tempo. Não dá praticamente para nada e chega a parecer ridículo pensar que algo pode ser feito nesse curto espaço de tempo. No entanto, e face ao mais recente relatório da ONU sobre pobreza no mundo em que se afirma que morrem 20 crianças a cada minuto que passa, esses 60 segundos de tempo ganham toda uma outra dimensão. Numa hora morrem 1200 crianças, num mês cerca de 900 mil, o equivalente a três tsunamis idênticos àquele que atingiu o sudeste asiático no passado mês de Dezembro. Impressionante! E alguém pensa nisso? Claro que sim. Na hora de ler ou ouvir a notícia estremecemos e pensamos na injustiça que é algumas destas inocentes crianças morrerem por falta de uma simples rede mosquiteira. Na injustiça que é, em pleno século XXI, haver ainda um quinto da população mundial que vive com menos de um dólar por dia, enquanto outro quinto não hesita em dar dois dólares por um café. Mas depois passa. Como um pesadelo que nos incomoda durante a noite ou uma nuvem sombria que se eleva acima das nossas cabeças e com o vento acaba por se afastar, fazendo de novo brilhar o sol que, por instantes, se ausentou. Podia aqui dissertar sobre várias soluções possíveis para fazer face a este flagelo crescente, mas não iria dar novidade nenhuma a ninguém. Toda a gente sabe como se poderia resolver esta questão, mas do pensar ao fazer vai uma enorme distância. E assim o desequilíbrio acentua-se, a diferença, a desigualdade. E deixava de haver riqueza, pessoas materialmente ricas, abastadas em excesso. E deixar-se-ia de poder afirmar que a soma dos rendimentos das quinhentas individualidades mais ricas do mundo é superior à de 416 milhões de pessoas pobres. Porque para que os pratos da balança se equilibrassem (e aqui já estou a ser muitíssimo optimista) era necessário que uns poucos despendessem de uma ínfima parcela do muito que têm para distribuí-la pelos que, praticamente, nada possuem. Tudo se resume a esta dificuldade em partilhar, em não dispensarmos um pouco dos nossos luxos em favor dos que nem sabem o que isso é. E assim, mais um minuto passou e mais 20 crianças morreram, vítimas da pobreza. É preciso dizer mais alguma coisa?

Blow her brain to pieces!

por migalhas, em 06.09.05
Descobriu-se agora que o orgasmo é literalmente uma experiência explosiva para o cérebro da mulher. Segundo revelações recentes, a maior parte do cérebro feminino sofre, na realidade, alterações radicais no momento em que a mulher atinge o clímax sexual, fechando-se quase na íntegra como que a dizer “fui ali já venho, não incomodem” ou “de momento estou noutra, não chateiem”. A descoberta ocorreu durante experiências efectuadas na Holanda, onde os cérebros de alguns casais foram monitorizados durante o acto sexual. Segundo parece, o facto de o cérebro sofrer um “apagão” quase geral durante o orgasmo, assegura que obstáculos como o medo e o stresse não se metam no caminho e funcionem um pouco como “empata fadas”, se é que me faço entender. Quando se está receoso ou sob um elevado estado de ansiedade, é sabido que se torna mais difícil haver disponibilidade para o sexo, pela simples razão de que, durante o acto em si, existe a necessidade de desapego face a tudo o que, eventualmente, possa servir de condicionante. Um total de 13 mulheres e 11 homens, com idades compreendidas entre os 19 e os 49 anos, fizeram parte destes testes que, curiosamente e devido à necessidade de alguma imobilidade durante a monitorização, viram-se obrigados a manter fixas as respectivas cabeças enquanto o resto do corpo, livre de movimentos, era estimulado. Os voluntários mantinham-se assim nus sobre uma marquesa, com as respectivas cabecitas no interior de um scanner, usando apenas meias para evitar que os pés lhes gelassem. Para alguns, mais acanhados, foi-lhes administrada uma determinada quantidade de álcool, apenas com o intuito de provar que este pode funcionar como afrodisíaco, desanuviando o ambiente e, consequentemente, tornando tudo bem mais simples. Se têm distribuído vinho pela malta toda, nem sequer eram necessárias as sempre ridículas meias que, penso eu, terá sido, muito provavelmente, a causa principal de alguma recusa por parte de alguns dos participantes. Não o facto de serem 24 voluntários que não se conheciam de lado nenhum, todos nus e a protagonizarem as mais brilhantes passagens do Kama Sutra. Nada disso me parece razão capaz de desmotivar o mais frio e insensível dos holandeses. Agora todos nus só com umas peúgas calçadas… estão a ver o número? Vai lá, vai. Ah, e já agora, só de referir que também o bicho homem foi sujeito ao mesmo estudo, mas sem resultados significativos. E porquê? Pelo simples facto de que os seus orgasmos se revelaram rápidos demais para permitir aos aparelhos usados chegarem a qualquer conclusão relevante. É nisto que dá a pressa. Vamos lá mas é a aprender com as “gajas”. Que nestas coisas do sexo, parece que nos levam alguma vantagem.