A triste ilusão dos dias
por migalhas, em 14.07.05
Cansado sempre do mesmo repetir de cenas já tantas vezes vistas e adornadas de sorrisos que espelhavam apenas o pólo positivo que lhes correspondia. A boa disposição, o riso franco e apaixonado que se colava apenas ao que era do agrado, ao que se pretendia ouvir. Dizer bem, ser afável, numa atitude previsível de quem sabe bem as consequências da outra face da moeda. Daquilo que nos custa ouvir, por muito verdade que seja, mas que não queremos e temos todo o direito de manter fechado por detrás daquela porta trancada. A cada tentativa, uma explosão. A cada investida, uma revolução. Nada que ele não soubesse já, mas que tinha de forçar para cá para fora deitar e expor os demónios que a todos nos hostilizam. No lado escuro da mente, no lado dormente que apenas acorda quando tocado o nervo que lhe dá vida em forma de repulsa, de ira incontida. Depois é a fúria, a emoção extravasada de uma razão que lhe falta ou de que não existe coragem para assumir. Por que não é só de lindas e verdejantes pradarias a perder de vista que a vida se compõe. Oh, quem me dera. Ou talvez se tornasse monótono e sem graça, apenas de reflexos do nosso ego se ouvir falar. De se ser brindado por galanteios, elogios e nunca um reparo se apontar, um que não fosse do agrado, pelo menos na sua totalidade. Como alguém um dia me confessou, bom mesmo é viver sem nada me criticarem. Nada do que faço é posto em causa, tudo me é permitido sem restrições e qualquer acto me é permitido pois nunca será censurado. Que ilusão, que abstracta forma de viver é essa? E depois? Quando fora de portas ou do regaço amigo me encontrar? Quando o mundo enfrentar e descobrir que tudo é bem diferente? Corro para trás? Tento remediar o que remédio então já não tem? Quem se esconde da realidade um dia vai ter de a encarar. E se nessa altura se estrear, como uma virgem na noite de núpcias ao seu único amor se deveria entregar, então será grande o desgosto, a confrontação. Pois que nada é o que deveria ser, ou aquilo para que não nos prepararam. E depois a desilusão, a queda a pique em direcção ao refúgio onde nos aguarda uma confissão há muito adiada. Talvez então seja demasiado tarde para rogarmos por salvação. Pois que tempo demais terá passado a que não deitámos mão. A que nos esquecemos de dar atenção. A que quisemos virar costas e fazer de conta que éramos outra pessoa, imune às regras por que cada um tem de se reger num jogo estúpido a que nos prendemos, desde o segundo em que a primeira golfada de ar nos preenche cada pulmão até ao suspiro final que nos leva numa outra direcção. Pela manhã tudo terá passado. Tudo será passado que faremos por esquecer. Errado. Deveríamos, isso sim, tentar entender e ver que ninguém é perfeito ou pode ambicionar ser. Que de erros se faz a nossa vida e deles beneficiamos para melhor a viver. Se pararmos e desta forma pensarmos, nunca mais dois dias se repetirão, nem para sempre viveremos nessa triste ilusão.