O reflexo
por migalhas, em 22.06.05
A falsa intensidade do reflexo expandido, logo trucidado no plano espelhado que o limita e impede de respirar. Assim se sentia de cada vez que se confrontava com a sua repetição invertida num mundo paralelo e quase cópia do real, não fossem pequenos detalhes, pormenores que a olho nu poderiam facilmente escapar. Não o espantaria se certa vez a mão estendesse e o outro lado alcançasse. Atravessando a espessura sólida do material físico que se interpunha entre si o lado de lá. Intrigado estava e muita curiosidade transpirava, só de pensar que existia uma ínfima possibilidade de lá poder chegar. Tantas e tantas vezes tentara, sem êxito. Subjugado que estava à obsessão que dele se apossara e que, prestes a levá-lo à loucura, procurava-lhe antes a cura num acto desesperado a que se propunha. Abeirou-se receoso, mesmo já tendo repetido aquele ritual vezes sem conta. Despojou-se de tudo, até do seu íntimo calcado pela moral, pelos condicionalismos mundanos, e atirou-se de cabeça. E só naquele momento compreendeu. Compreendeu que tinha de se soltar, de se desprender de todas as amarras que o mantinham preso ao lado de cá, para que lhe fosse possível passar-se para o outro lado. O lado de lá do espelho. Renascido se sentiu, mas logo traído pela visão. Igual, horrorosa, cópia da que deixara milésimos de momento antes e a que já não podia regressar. Agora era filho do mundo paralelo, aquele outro a que sempre ambicionara e com ele tantas vezes sonhara. Era igual, apenas invertido. Nada mais do que isso. Ergueu-se e caminhou, sem saber que rumo tomar ou ao que se agarrar. Apenas caminhou e do espelho para sempre se afastou.