Ou como a vida também pode ser ensinada
por migalhas, em 16.06.05
Joel era poeta. Todas as madrugadas, depois de fazer a ronda que lhe competia como guarda nocturno e de uma breve passagem pela padaria para confeccionar o pão que logo pela manhã era alvo de grande procura, rumava a casa para um duche rápido e mudando de indumentária dirigia-se à escola secundária onde leccionava Português. Findas essas horas de transmissão de conhecimentos e saber, o seu destino era o restaurante típico, bem no centro da cidade, onde era cozinheiro e onde, embora de outra forma, também se dedicava à transmissão de conhecimentos e saber, estes por via do sabor. Terminada a hora do almoço, vestia a pele - ou deveria dizer a farda - de funcionário do museu municipal e aí voltava a fazer uso da sua tendência para ensinar e despertar a curiosidade sobre outros mundos, outras culturas. De quando em vez - nos curtos períodos que mediavam entre uma visita e outra - Joel sentava-se num dos bonitos e lustrosos bancos que pontuavam aqui e ali o amplo espaço das exposições e punha-se a admirar a beleza de cada tela ali exposta. Compunha aí alguns dos seus poemas, num velho bloco de notas que lhe fora oferecido por um seu dedicado aluno de piano, instrumento que, a par da guitarra clássica, ensinava a miúdos e graúdos em lições sempre ansiadas. Ao fim da tarde, após o fecho do museu, Joel dava ainda um saltinho ao canil municipal onde, de forma voluntária, dava a ajuda possível na limpeza, tratamento e alimentação dos cães vadios que todos os dias ali chegavam com o olhar triste de quem sente findarem os seus dias de liberdade. Muitos amigos Joel ali possuía igualmente. Bastava a alguns cachorros mais espevitados sentirem-lhe o aproximar do cheiro, para logo desatarem em prantos e correrias só saciadas com uma festa mais prolongada. Já com a noite no horizonte, Joel despedia-se sempre com saudade dos seus fiéis amigos, seguindo caminho em direcção à doca onde repousava a sua pequena embarcação. Motor ligado, luzes acesas, painéis de controlo regulados e lá se fazia ele ao mar para o que desejava sempre ser uma boa pescaria. Em tempos, Joel chegara a ter uma paixão. Outra paixão, que não as que hoje lhe preenchem os dias. A de uma senhora, que com ele um dia se cruzou numa rua mais movimentada da cidade e que desde então lhe acelerava as batidas do coração de cada vez que a via ou nela pensava. Mas foi sol de pouca dura. A senhora - que por sinal era ainda de uma perfeita figura, mesmo apresentando a respeitável idade de 78 anos - foi forçada a vender a sua velha habitação e a rumar para longe, para mais perto dos seus filhos, que, assim, podiam tomar melhor conta dela. Um pequeno desgosto que Joel logo tratou de apagar com inúmeras actividades que pouco tempo lhe deixavam para pensar em si e nos seus sentimentos. Agora escrevia poesia, quando ainda assim se sentia traído pelos pensamentos que, raramente, lhe recordavam a idosa senhora. Quando faleceu, com 94 anos, Joel foi recordado com saudade por quantos haviam tido o prazer e o privilégio de com ele privar. Todos os seus alunos, da escola, das lições de guitarra clássica, de piano, do museu, quiseram marcar presença na sua despedida. E foi o mesmo rapaz - agora já homem feito e respeitado chefe de família - que um dia lhe ofereceu o bloco onde ele depositava os seus pensamentos, que lhe fez a última vontade em vida: a de ser cremado e as suas cinzas no mar espalhar, num entardecer soalheiro e calmo. Ao rapaz - agora homem - deixou-lhe o barco. O velho barco com que em cada dia se fazia ao mar e de lá trazia histórias sempre belas para contar. Joel tinha muitas profissões e em todas elas não se cansava de ensinar. Ensinar que a vida vai até onde nós a deixarmos ir, dando-lhe apenas ligeiros acertos no rumo a seguir. Que cada dia pode ser uma constante emoção, seja a apreciar uma bela tela, a ensinar uns acordes de música a uma criança sempre curiosa e desejosa de mais saber ou simplesmente a observar atentamente o que à nossa volta se passa.