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TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

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Faça-se luz

por migalhas, em 07.04.05
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Era uma vez um velho lampião que todas as noites alumiava aquela esquina que dizia já sua. Tanto tempo por ele passara que quase já não guardava memória de há quantos anos ali se instalara. Todos os fins de tarde fazia-se notado, a partir do momento em que acendia a sua lâmpada e com ela dava outra vida àquela porção de chão que com ela iluminava. Todas as noites via gente nova, novos e velhos, cumprimentava os visitantes habituais e com todos falava, até com os animais. Gatos, cães, pombos, todos o conheciam e com ele trocavam interessantes olhares e diálogos de pasmar. Por aquela esquina dera a sua vida e hoje, também ele já cansado, dedicava mais tempo a contemplar quem passava, a observar os jovens a namoriscar, os velhos a refilar, as varinas a apregoar. Do alto daquele antigo edifício, tinha uma outra panorâmica desta cidade e das suas gentes. Via o que nenhum outro via e guardava histórias que gostaria um dia de contar. Mas a quem, pensava ele. Se os velhos lampiões como ele eram todos os dias substituídos por novos e mais brilhantes candeeiros de rua. Se o tom amarelado da sua luz característica e típica era agora cada vez mais desprezado e em cada esquina por uma luz branca e ofuscante trocado. Não tinha a quem deixar o que vira, o que sentira, o que soubera ou descobrira. Sabia ser uma questão de tempo, até dar lugar a um mais novo e mais moderno do que ele. Restava-lhe a esperança, no entanto, daqueles que viviam um revivalismo onde ele tão bem se integrava. Do círculo que a galope se fechava e, incansável, do velho voltava a fazer novo, num dejà vu que já ninguém espantava. Ao abrigo da sua luminosidade quente, contavam-se infinitas pessoas, animais e acontecimentos mais ou menos banais. Por ele passava uma grande parcela da história que naquela esquina se respirava e que as paredes, as janelas, as portas e as calçadas com ele partilhavam. A ele, cabia a função de as iluminar. De lhes dar forma, sombras, contornos. De para lá da noite as permitir ser. Para na alvorada de um novo dia a outros se darem a conhecer e na intimidade do seu pensar, ajudar cada um a melhor crescer. Parece-nos a nós que é a luz que nos incomoda. Quando, na verdade, o incómodo não recai na luz - a mesma que nos alumia o caminho -, mas sim na forma como a olhamos.