A verdade da mentira
por migalhas, em 01.04.05
Então não é que hoje logo pela manhã fui presenteado com uma mão cheia de excelentes notícias? É verdade. Dizia-se, de fontes seguras, que a disputa Israel/Palestina pela faixa de Gaza havia finalmente terminado. Quem diria. Ao fim de tantos anos. Mais à frente, ouvi dizer que a Igreja Católica havia finalmente decidido partilhar a sua imensa fortuna com os países mais pobres e necessitados do mundo. Uau! O role de boas novas prosseguia e de entre as demais atentei na que dava conta de que o bom senso se havia finalmente instalado entre todos os países envolvidos em conflitos, havendo da parte de todos o desejo e o compromisso sérios de levar por diante umas tréguas por tempo indeterminado, bem como uma disposição firme de se reunirem e através do diálogo tentarem encontrar uma solução pacífica para cada um dos casos. Até as grandes potências haviam começado uma mega campanha de apoio às vítimas da fome e disponibilizavam todos os seus imensos recursos para combater a miséria e a pobreza que grassa por este nosso mundo fora. Como consequência, os direitos humanos passavam a ser criteriosamente respeitados e alvo de um apertado controlo em todos os cantos do globo. Atitude que gerou da parte da generalidade dos grupos terroristas mundiais a promessa em deporem definitivamente as armas, terminando assim de uma vez por todas com os massacres, os banhos de sangue e a consequente morte de inocentes. Numa outra área, era tido como certo que a classe médica e científica mundial havia chegado finalmente à descoberta da cura para todos os tipos de cancro, para a sida, a malária e todas as enfermidades que são responsáveis por milhares de mortes todos os anos. Os recursos naturais estavam finalmente a ser alvo de uma prioridade nunca antes vista e alternativas viáveis aos mesmos eram apresentadas um pouco por todo o lado. O combate à massiva destruição da nossa camada de ozono passava também a ser uma prioridade a partir de hoje, com pesadas coimas e consequências para quem não acarretasse as novas leis acordadas. Como uma bola de neve que se avolumava a cada segundo, era anunciado igualmente o fim dos testes efectuados em animais pelas mais diversas empresas, bem como terminava a partir desta mesma data a caça selvagem e sem escrúpulos a todas as espécies animais, principalmente aquelas que se encontram em vias claras de extinção. Nem queria acreditar na sequência de eventos que me chegavam aos ouvidos. E tinha razão para isso, como imediatamente constatei. Pois ao olhar para o calendário, algo se iluminou na minha cabeça, despertando-a para a realidade. A verdadeira realidade. Nua e crua, como sempre a conheci. 1 de Abril. O instituído dia das mentiras. Claro, era bom demais para ser verdade. Afinal de contas, nada havia mudado e tudo não passava de tretas inventadas à última da hora para dar algum ênfase ao conceito idiota que está na base deste dia. A desilusão durou pouco, pois também pouco, ou mesmo nada, estou habituado a notícias deste teor. Pois que, por norma, são as desgraças e as grandes catástrofes que povoam os noticiários, fazem as manchetes dos jornais ou fazem disparar as audiências televisivas. E se tal mesmo assim não for suficiente, então apela-se para a curiosidade e coscuvilhice natural deste povo pelo alheio, por via da violação - consentida, diga-se - da vida privada, e desprovida de qualquer interesse, das ditas figuras públicas. Enfim, quem sabe se um dia todas estas mentiras não se irão ainda tornar realidade, pela mão dos nossos filhos. Basta que os guie uma outra forma de pensar, que lhes permita remediar todos os erros que cometemos, tudo aquilo onde falhámos. Espera-os muito trabalho pela frente. Até porque as asneiras que protagonizámos ao longo dos tempos não têm fim, a que acrescem as respectivas consequências de todo imprevisíveis. Estragar é fácil, destruir também. E se o pensamento por que se pauta toda esta corja de gente insensível, despreocupada e indiferente ao próximo, for algo do género os que vierem a seguir que se orientem, então nem todos os deuses juntos nos podem valer. Até esse dia, teremos de continuar a viver neste e com este mundo, cuja verdade mais valia que fosse uma grande mentira.