A noite passada podia jurar que não estive sozinho. Eu que me orgulho de morar num apartamento só meu desde que abandonei a casa dos meus pais, vai para dez anos e tinha então dezoito acabadinhos de fazer, estava tudo menos interessado em companhia. Ainda por cima daquela que nem sequer consigo distinguir. Será que estou como o outro, que dizia que via pessoas mortas? Que eu saiba, este meu tecto de há dez anos a esta parte não possui qualquer registo de ter sido assombrado anteriormente. Se tal tivesse acontecido, estou certo de que o senhor Silva, o senhorio, me havia comunicado o facto. E mesmo que mo tivesse omitido, estou certo de que se uma família inteira tivesse sido alvo de um brutal assassínio colectivo resultante de um acto tresloucado de um dos seus elementos, isso seria coisa para eu me lembrar de ter lido num qualquer periódico da nossa praça. Por todas estas razões, o que se passou ontem neste apartamento só pode ter sido algo que não encontre justificação em matérias ditas do além ou relacionadas com espiritismos e afins. Mas a sensação, essa, mantém-se. A sensação e não só. Também as provas concludentes de que alguém, que não eu, tocou em objectos vários e tirou-os das suas posições habituais. Por toda a casa encontro vestígios de que recebi realmente visitas. Resta saber quem foram elas. E esta dor de cabeça aguda que tomou conta de mim desde que acordei, também não ajuda em nada. Não me permite a concentração necessária e capaz de poder sequer analisar o que possa ter acontecido. Nesse preciso momento, fui interrompido nos meus pensamentos por um som indescritível, que ecoou na minha cabeça ao ponto de quase me fazer vacilar, tal e qual um insano perante a sua loucura. Apertei forte os ouvidos, mas aquele eco estava agora enraizado bem fundo na minha caixa craniana e nem por um segundo esmorecia. Até que me apercebi então da origem do ruído. Era a campainha da porta que tocava. Mas nunca ela soara assim, tão alto. Corri a abrir a porta e a tentar amenizar as ininterruptas tentativas de quem do outro lado procurava saber se eu me encontrava em casa. Mal a abri, dei de caras com o senhor Silva. A sua expressão era dentro do género daquela a que se costuma chamar de poucos amigos. Carrancudo e de olhar fulminante, berrou qualquer coisa que as minhas mãos coladas aos ouvidos não me deixaram entender. Antes de me permitir voltar a ouvir, disse-lhe que não falasse tão alto pois estava com uma terrível dor de cabeça. Ao que ele respondeu que era bem feito. Pois na noite anterior, tinha sido eu, por via de uma suposta festa que durou até às cinco da madrugada, que lhe havia proporcionado a ele uma dor idêntica à que agora não me largava. Nos minutos que se seguiram, fui avisado, ameaçado, confrontado, repreendido com um role de queixas em relação ao meu mais recente comportamento. Que aquele era um prédio de gente digna, que ali viviam muitas famílias, que a maioria das pessoas tinha de se levantar cedo para irem trabalhar, que eu era um sorna, que nada fazia durante o dia e que era durante o período em que os outros descansavam que aproveitava para me fazer notado, em atitudes de todo condenáveis. Por segundos, que pareceram horas, cheguei-me mesmo a ver no corredor da morte, percorrendo os últimos metros que separam um condenado do seu churrasco final. E ele ali, dando continuidade ao seu discurso irado. Discurso que terminou com uma curiosa alusão, em forma de advertência, a algo de que não retenho qualquer memória. Por mínima que seja. De que não queria voltar a ter de chamar as autoridades para pôr cobro ao que apelidou de insustentável. Pobre senhor Silva. Cheguei a ter pena do homem. Para ele estar a usar termos caros de que não sabe sequer o significado e modos duros que não fazem nada o seu género, é porque terá acontecido mesmo coisa da grossa no meu apartamento, durante a última madrugada. Afinal sempre fora visitado. E sempre havia uma razão para não me lembrar por quem. Festa? Pois... daí os copos e garrafas espalhados pela casa, fora dos respectivos sítios. Agora entendo. Fechei a porta com um pedido de desculpas e tomei duas aspirinas de uma assentada antes que a cabeça explodisse e o Silva ficasse com o apartamento livre para alugar a gente mais digna. Daquela que todos os dias tem de se levantar cedo para ir trabalhar e que um dia, porque se fartam ou simplesmente porque lhes salta a tampa, chegam a casa e matam todos os elementos da sua família, após o que dão um tiro na própria cabeça. Dor de cabeça por dor de cabeça, prefiro esta de que agora sou proprietário e que resulta, tão só e apenas, de uma simples e inofensiva ressaca.