Foi no último Domingo, 19 de Dezembro, que teve lugar o tradicional almoço de Natal do Grupo Gimnodesportivo e Recreativo de Quatro Rodas Sujas de Lama, de seu nome Eskapadelas. Desta feita organizado pela dupla Jesus/João Pedro e com partida de Palmela e chegada ao ventoso Cabo Espichel, o mesmo foi abrilhantado por um passeio de dificuldade muito elevada, da qual eu mesmo dei conta "in loco". Estávamos ainda em período de aquecimento (3 míseros quilómetros percorridos!) e já eu dava nas vistas, mergulhando fundo num buraco que, visto de fora, nem parecia assim tão fundo. Claro que, com a lama que este possuía e que o cobria parcialmente, a par dos meus pneus de todo impróprios para semelhante lamaçal, nem um metro percorri até me sentir atascado e completamente inclinado num ângulo que, na altura, me pareceu bastante angustiante. Depressa me arrependia de ter optado pela "alternativa radical" (felizmente a única de todo o road-book), principalmente quando, paralelo a esta meia dúzia de metros acidentados, passava um caminho plano e sem ponta de lama, a que até um Mazda Cabrio se fazia sem qualquer tipo de dificuldade. Nada que não tenha sido prontamente solucionado através da sempre pronta colaboração de todos os homens presentes (sim, porque as "gajas" riem e tiram fotos) e de dois todo-o-terreno de fibra que, com a ajuda de cintas e afins, em pouco tempo dali arrastaram aquelas duas toneladas e meia de veículo. E pronto, poderia dizer que a emoção acabara logo imediatamente após este incidente que, felizmente, não provocou danos. O resto do percurso foi pacífico e sem mais ninguém a querer dar nas vistas. Depois veio uma curta paragem em Azeitão - para a degustação de umas deliciosas e típicas tortas - e onde fomos recebidos pela Filarmónica local que, debaixo de algum frio, tocou uns quantos temas de Natal nossos conhecidos. Mais meia horita de percurso e dávamos entrada no Pantanal. Não, não se tratava de mais uma parte do percurso intransitável, mas sim do Restaurante onde fomos muito bem servidos e igualmente recebidos ao som de música. Só que aqui a música foi realmente outra. Um senhor na casa dos sessenta e tais, acompanhado apenas de uma Ibanez - cujo modelo devia ter perto da idade dele - e de uma caixinha de ritmos, resolveu brindar-nos com um reportório exclusivamente de música brasileira, mas a que teve a infeliz ideia de adicionar uma letal combinação de pronúncia tipicamente portuguesa com uma gritante e contínua desafinação vocal que a todos tocou de perto. Eu diria mesmo de muito perto, pois ficámos localizados numa mesa paredes-meias com as colunas de som de onde o senhor debitava as suas repetidas desafinações, sem que disso sequer se apercebesse. Resultado? Vimo-nos e desejámo-nos para nos fazermos entender, o que levou a generalidade dos presentes a fazer uso do único recurso possível face às circunstâncias: a alta voz. Única forma de manter alguma comunicação entre os presentes, de todo útil num almoço em que colocar a conversa em dia era prioridade. Quanto ao rodízio, estava excelente! O meu peixinho era de uma frescura que saltava à vista e rematado por um quindim divinal, caiu que nem ginjas! Voltámos à estrada, então já sob intensa chuva e nevoeiro, e terminámos o passeio com uma interessante visita guiada ao farol do Cabo Espichel. Desta curiosa visita, fiquei a saber que o dito farol - complexo auxiliar de navegação, quer marítima, quer aérea, e cujo foco de luz atinge uma distância máxima de 43 quilómetros -, pode, em caso de falha eléctrica e do respectivo gerador, ser accionado por um, imaginem, Petromax! Não há como nós, portugueses, para desenrascar! Seguiram-se as despedidas, os votos de boas festas e a obrigatória limpeza das partes baixas do veículo, onde a lama já se transformara em barro que, muito a custo, lá acabou por sair, ainda assim, em forma de blocos bem compactos. Foi o pretexto para oferecer a prenda de Natal ao meu competente Discovery: um banho completo, algo que não via desde o último passeio de Natal. Venha agora o próximo, com a promessa, desde já feita, de que não servirá de veículo à minha necessidade incontrolável de protagonismo.
Aquela fieira de prédios altos e majestosos, quase todos a tocarem os céus, só destoava de todas as outras fieiras de prédios igualmente altos e majestosos por uma pequena razão. Quase imperceptível no meio dos seus irmãos muito mais altos, um pequeno prédio de apenas dois andares havia resistido à tentação de crescer. De acompanhar os seus pares naquela louca e desenfreada corrida às alturas. Mantivera a sua baixa estatura - equivalente aos seus dois únicos pisos - numa pose quase insignificante face aos seus vizinhos gigantes. Insignificante, mas assumida desde a primeira hora. De tal forma se mantivera fiel a esta sua ideia - suportada por uma intransigente teimosia - que já ninguém sequer ousava mencionar o facto. Passara a ser natural para todos os outros, coabitar com uma "amostra de prédio" como ainda lhe chegaram a chamar. Designações a que não deu qualquer importância, convencido que estava dos seus propósitos. Nada o demovera antes da mesma forma que nada o iria demover agora. Passados os piores momentos - aqueles iniciais em que a sua teimosia muitas discussões gerou - todos viviam agora em harmonia perfeita e plenamente convictos de que assim seria para sempre. Havia no entanto um prédio, a alguns quarteirões de distância, que ainda hoje não se conformava com esta situação, a seu ver, ridícula. Por que razão aquele prédio se recusara a acompanhar o crescimento dos demais? Que ideia estaria na base daquela tão insólita decisão? Não querendo dar parte fraca - mas remoendo aquele assunto todos os dias, durante anos a fio - o inconformado prédio de duzentos e trinta e três andares lá se decidiu a questionar o parente que ele próprio considerava muito afastado. - Ouve lá. Tu, ó pequenote. - Estás a falar comigo? - Claro que estou a falar contigo. Vês aqui mais algum prédio a que possa chamar pequenote? - perguntava o enorme arranha-céus, agora todo encurvado como única forma de se chegar mais perto. - Não gosto que me chamem nomes associados ao meu tamanho. - Tudo bem, é justo. Não volto a fazê-lo. Mas há uma coisa que me tem dado a volta à telha e que gostava de esclarecer contigo. - Muito bem, fala. - Tem a ver com a tua altura. - E o que é que tem a minha altura? - questionou em resposta, preparando-se para argumentar o que tantas vezes já repetira a outros curiosos como ele. - É que é muito baixa. - Pois é. E isso incomoda-te? - Não, não me incomoda. Mas faz-me confusão. - Faz-te confusão? - Sim, faz-me confusão porque é que tu não queres ser alto como todos nós. Tu nunca tocaste os céus, nunca experimentaste a sensação única que é ver tudo lá de cima. É uma vista espantosa que tu aqui de baixo nem imaginas. - Mas quem é que te disse a ti que a vista que tenho aqui de baixo não é tanto ou mesmo mais espantosa do que a que tu tens lá de cima? - Essa agora! Como é que é isso possível? - Eu digo-te. Vocês cresceram, uns mais do que os outros, mas sempre com o objectivo de se afastarem cá de baixo. Tornaram-se altivos, frios, distantes e convencidos de que a vossa estatura era o que mais interessava. Mas enganam-se. Todos. O melhor da cidade está aqui em baixo, nas ruas. O melhor da cidade são as pessoas e elas movem-se aqui, a dois passos de mim. Passeiam, correm, zangam-se, convivem, riem, choram, falam, tudo aqui, bem pertinho de mim. Sente-se o calor humano cá em baixo. E isso sim, é o que verdadeiramente importa. Por um acaso vocês lá de cima têm essa visão? - Das pessoas? Não... lá de cima elas são minúsculas. Quase tanto como tu. - Percebes agora porque é que eu nunca quis crescer como todos vocês? - Acho que sim. - Como é que eu assistia a todo este espectáculo humano, a toda esta vida que pulsa a cada segundo na cidade, se estivesse lá no alto? - Tens razão. Nunca tinha pensado nisso. Obrigado por me teres feito ver essa tua visão. E com este esclarecimento, o alto e majestoso prédio de muitos e muitos andares regressou à sua posição vertical, compreendendo agora as razões que haviam levado aquele pequeno prédio a recusar-se a crescer. A recusar-se a ser mais um arranha-céus vaidoso e apenas preocupado em tocar o céu, esquecendo que o mais importante, e única razão da sua existência, vive cá em baixo, com os pés bem assentes na terra.