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TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

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Pedaços de mim - parte dois

por migalhas, em 16.12.04
Continuação...

Um homem que nunca necessitara da ajuda de ninguém, que sempre se safara sozinho, ver-se agora numa situação destas. E foi com este pensamento em mente, que assisti à partida de um dos meus olhos da respectiva órbita que até então ocupara. Também ele esgotara o tempo de permanência junto do meu corpo. Rolou pelo chão em madeira de pinho flutuante e só viu o seu avanço travado pela pata do Jerónimo, o nosso gato de estimação. Julgando tratar-se de uma qualquer bola com que adora brincar, o estúpido do gato pôs-se a dar patadas no meu precioso olho e a correr atrás dele em insistentes ofensivas a que o pobre indefeso não conseguia pôr cobro. Não passou muito tempo até que uma nova bola se juntasse à brincadeira. Eram agora dois os olhos que sucumbiam aos maus tratos proporcionados por um gato que, a ver pelo entusiasmo com que deles fazia uso, aparentava estar muito entretido com aquelas recentes novidades. De orgulho ferido e tonto de tanto ver a rodopiar - devido às voltas e reviravoltas que os meus ex-órgãos de visão sofriam nas patas daquele estúpido animal felpudo -, percebi e dei então valor à impotência que por vezes se sente face a determinadas situações. Tivesse eu pelo menos um braço à mão e já aquele gato, que eu sempre detestara, tinha levado com um sapato em cheio no focinho. Mas não, tinha agora de sujeitar-me às suas parvoeiras, como que em paga de tudo o que eu lhe havia feito até então. Estava claramente a pagar pelos meus pecados. Disso não restavam dúvidas. Mas nisto, a porta da rua abriu-se e uma voz conhecida soou, chamando pelo monte de pêlo. Prevendo que algo de comestível poderia acompanhar aquele chamamento, lá foi ele ter com a empregada da limpeza desistindo dos olhos que até então lhe haviam servido de distracção. Agora sim, ia sofrer a maior das humilhações: aparecer daquela forma perante a mulher a dias. Mal virou a esquina em direcção ao corredor onde se encontravam os dois terços de corpo que ainda me restavam - a cabeça e o respectivo tronco, onde esta se encontrava ainda agarrada - pisou um dos olhos que logo se esborrachou sob a sola do seu sapato, produzindo um som horrível só possível de reproduzir na presença... de um olho acabado de esborrachar. Assim que me viu naquela figura, esbugalhou os olhos, gritou, levou as mãos à boca e saiu em corrida em direcção ao meu escritório. Ouvia-a a remexer numa das gavetas da minha escrivaninha e tão depressa como se ausentara, regressou com um tubo de cola UHU nas mãos. Com uma mestria que até então lhe desconhecia, foi juntando as partes que se haviam libertado do meu corpo e colou-as, uma a uma, ao tronco onde pertenciam, com a preciosa ajuda da cola. Terminado o trabalho de recuperação, colocou-me à janela para secar. Nem dez minutos passaram até me sentir como novo. Voltava a ser o homem completo que sempre fora. Ou quase. Pois no lugar do olho esborrachado, havia sido colocada uma esfera de vidro cuja falta pouco ou nada se iria notar no enorme lustre da sala. E tudo graças à Zarzuela, a nossa empregada mexicana. Em breve estávamos na cama a copular e a repetir os feitos que tantas vezes havíamos protagonizado durante as suas horas de expediente. Só mais tarde, depois de ela se ter ido embora, é que me apercebi da falta do outro membro, o tal que não sei se entra para a contabilidade dos que havia perdido e recuperado nesse mesmo dia. Não dei importância. Sabia que era obra da Zarzuela que, durante o tempo em que me ausentara num curto dormitar, mo havia tirado e levado consigo. Queria a exclusividade do mesmo, como tantas vezes mo pedira. Não me preocupei muito. Se era isso que ela queria, tudo bem. De qualquer das formas também já não lhe dava uso em casa, por isso não havia grande mal em levá-lo com ela. Isto, claro está, desde que volte a trazê-lo de cada vez que venha fazer as limpezas. Pois que da cola, trato eu.

FIM