E se ao fim de todo este tempo, viesse agora a descobrir que afinal eu não sou realmente eu. Como se toda a vida tivesse sido um outro eu que não este eu que eu julgava ser. Soa a confusão, mas não o é. Quanto muito pode ser esquisito ou insólito, mas não confuso. Aliás, tudo se resume à confrontação do meu eu actual - aquele que eu julgava ser - com aquele outro que afinal sempre fui, mas que desconhecia ser. Será que poderia refazer toda a minha vida vivida até agora sob a pele falsa do outro eu? Ou teria apenas a possibilidade de continuar a partir daqui, mas agora sob uma nova roupagem, sob uma nova identidade, sob uma nova personalidade? Mas iria a personalidade mudar? Afinal de contas eu continuava a ser o velho eu de sempre, só que agora renascido. Iria eu ter consciência dessa diferença? Iria eu dar por ela, no meu dia-a-dia, na minha vida mundana? Ou de um momento para o outro pura e simplesmente me transformava, tal e qual um super-herói que troca as vestes do ser banal e igual a tantos outros pelas do personagem dotado de super poderes? É realmente uma questão que me persegue. Principalmente desde que dou comigo a protagonizar situações que até agora eram novidade para mim. Ainda um dia destes, sem que ninguém o fizesse supor, estava eu a tentar movimentar-me em pleno coração de uma Baixa apinhada de gente, quando de repente me salta a tampa! Sem mais nem senão, eis que começo a furar por entre a multidão e entro na primeira cabine telefónica que encontro pela frente. Entro é uma força de expressão, pois já lá vão os tempos em que essas preciosidades eram umas simpáticas casinhas vermelhas que possuíam telhado, porta e tudo. Mas a verdade é que tal não me passou pela cabeça. E movido por um instinto que até então desconhecia, eis que dispo a roupa que trazia sobre o pêlo - e porra! Se fazia frio naquele dia - e descubro, para meu grande espanto, que por baixo da dita se escondia um fardamento ridículo de um pretenso super-herói que existia em mim e que eu simplesmente ignorava. Vi-me, de um momento para o outro, rodeado de gente parva que apontava na minha direcção e ria à gargalhada. Os miúdos corriam para mim e puxavam-me o fato que assim saía do lugar dando uma imagem distorcida do herói que ali se materializara. Ainda tentei fazer entender àquela gente que tinha uma missão - que por acaso também desconhecia - e que os meus intentos eram os de salvar o mundo - a começar por Portugal - de todos os vilões. Ao que ainda riram com mais vontade. De repente, senti-me como se fosse um daqueles comediantes que agora estão muito na moda, dos que estão sempre em pé, a dizerem piadas. Em plena Baixa de Lisboa, rodeado de uma multidão que noutros tempos estaria a trabalhar, mas que agora se passeia como forma de passar o tempo que lhes sobra por estarem desempregados, até que a ideia parecia ser boa. A indumentária - escolhida não faço ideia por quem - pelo menos tinha uma vantagem clara: chamava a atenção. À distância, diria mesmo. As tonalidades rosa choque e verde lima combinadas de forma muito discutível, a capa em tons de roxo e uma mascarilha laranja, compunham o ramalhete. Ainda tentei averiguar quais os super poderes que me haviam sido concedidos, sem no entanto criar grandes expectativas quanto aos mesmos. Depressa conclui que não era invisível - o que tinha dado imenso jeito naquela altura -, não voava - nem mesmo baixinho! -, não conseguia trepar às paredes, não possuía visão de raio X, não conseguia pegar em grandes pesos - mas também sempre tive problemas de coluna, por isso... -, não vertia fogo por nenhum orifício do meu corpo e nem mesmo esse, o corpo, sofria qualquer tipo de alteração digna de constar - por mínima que fosse - no compêndio das alterações físicas ditas insólitas. O que parecia funcionar como a grande arma de que agora era claro detentor, era o debitar de texto e de palavras que disparava a uma velocidade - essa sim insólita - que não andaria muito longe daquela com que qualquer pistola automática cospe as suas munições. E a cada nova deixa que me saía - com a maior das naturalidades, como se sempre assim tivesse sido - a multidão que me rodeava gargalhava em uníssono criando um alarido tal que cada vez atraia mais e mais gente ao local onde me encontrava. Não sei se era isto que me estava destinado, se era este o outro eu escondido que nunca tinha tido o prazer de conhecer. Mas a verdade é que é graças a ele que hoje encho salas de espectáculos em actuações que parecem nunca chegar para tanta procura. O pior vai ser quando acordar amanhã de manhã. Será que ainda serei este novo eu, cheio de sucesso e de fama? Ou voltarei a ser o outro, já velho e sem surpresas, que até então se passeava em mim, usando o meu corpo apenas como veículo da sua existência? Logo se vê. Chegada a hora logo verei se ainda faço rir os outros ou se tudo isto foi apenas uma brincadeira pegada. Pois quem ri por último, ri atrasado!
Dando ouvidos aos sempre sábios conselhos da minha querida esposa, coloco aqui o primeiro capítulo do meu, até à data único, livro editado, intitulado "DEUSES NA TERRA". Trata-se de uma história fantástica que poderá ser encomendada em qualquer livraria, caso vos tenha suscitado a curiosidade de a conhecerem na íntegra. A Editora é a Colares, o livro faz parte da sua Colecção Fantástica e foi editado em 2002. Ah, é verdade! O nome do autor é Miguel Teixeira, para os que não sabem. Espero que gostem.
Capítulo 1 O COMEÇO
Sentia-me o rei do mundo. Bem sei que as quatro cervejas que havia consumido, eram grandemente responsáveis pelo facto. Mas, ainda assim, nada invalidava o agradável da sensação. Lá fora, o calor era insuportável. Quarenta e dois graus não era propriamente a temperatura ideal para se passear pela rua. E mesmo dentro de casa, não havia ar condicionado que fizesse esquecer tanto calor. Com o aproximar da hora marcada, as pessoas iam chegando. Ora conduzidas por grandes limousines, ora fazendo-se transportar nos seus espectaculares carros, todos impunham o respeito próprio de quem é influente sem precisar de o afirmar. A ânsia da espera começava a consumir-me. Os minutos teimavam em passar e tornava-se difícil prever o desenlace final daquele momento, até então tão desejado, mas agora vivido com um crescente receio. Nem mesmo a indumentária escolhida para a ocasião reunia agora a mesma aprovação de há umas horas atrás. Daí, que o efeito do álcool seja de todo útil numa situação destas. A sensação de que tudo pode acontecer, sem que se dê a mínima importância aos efeitos daí resultantes, é por demais gratificante. A acrescentar a tudo isso, o facto de me sentir de todo deslocado naquele mar de seres estranhos, com os quais, pouco, ou mesmo nada, me identificava. Embora a celebração me tivesse a mim como figura central, sentia-me algo perdido num meio que nada me dizia. "Talvez por ser um novato nestas andanças" - pensei. Mas, uma vez mais, bem dito o efeito do álcool. Embora figura responsável por aquele evento especial, até então eu concorria seriamente para figurar no top dos mais ignorados por todos quantos ali se encontravam. O que me deixava livre para observar os tiques da burguesia, as suas conversas de ocasião, os sorrisos forçados, ou mesmo as últimas tendências da moda. Que numa onda de revivalismo, pareciam apontar para o regresso do eterno fato e gravata. Opção que, numa ocasião como esta, cai sempre bem. Aliás, o mesmo raciocínio que esteve na origem da minha escolha. Talvez devesse ter ponderado um pouco mais a conjugação de cores. Ou mesmo de padrões. Por alguma razão a minha mãe sempre me alertara para o facto de riscas e quadrados não ligarem bem. Mas agora era tarde demais. E, vistas bem as coisas, eu agora pertencia ao grupo restrito dos artistas. Logo, não havia grande mal em comungar dos seus gostos. Até porque é sabido aquilo de que estes seres são capazes para se mostrarem diferentes dos demais mortais. Não sei se por esta razão, a verdade é que uma alma caridosa ousou dirigir-me a palavra. Tratava-se do presidente do clube, pessoa simpática que tinha sido igualmente o primeiro a transmitir-me a notícia que hoje me trazia até aqui. Uma simples troca de palavras com o responsável máximo do clube e o corrupio de outras individualidades em direcção a nós fez-se desde logo sentir. Por outras palavras, comecei a ser reconhecido. Os casais aproximavam-se, primeiro a medo, mas depois com um à vontade de quem me conhece desde sempre. Mas como em mim o álcool tem o efeito de me soltar a língua, não foi nada difícil manter várias conversas cruzadas em simultâneo, ao ponto de ser tão convincente que deixava transparecer uma pessoa sociável e de trato fácil, que na realidade não sou. Foi então que, já algo massacrado com tantas questões do género como, porquê, quando, e até mesmo, onde, fui salvo, "in extremis", pela bendita voz que ecoou pelo átrio de entrada. Esta ia pedindo aos presentes que subissem ao andar de cima e se fossem instalando na sala, para se dar início à cerimónia. O grande momento tinha finalmente chegado!
Agora sim, chegaram os dias cinzentos. Colados a eles veio também a chuva, o vento e o frio, que este ano tardavam como que a fazerem cerimónia. Acendemos as luzes por volta das 15h30, 16h00, e andamos como que curvados perante o peso de um enorme amontoado de nuvens escuras e ameaçadoras que nos sufoca e nos dá uma ideia ainda maior da nossa pequenez face à mãe natureza e aos seus elementos. Bocejamos o triplo das vezes, andamos quase sempre com a neura e arrastamo-nos já com saudades do Verão que ainda agora nos deixou. Em breve segue-se o Natal, depois a passagem de ano e não tarda estamos em 2005. Quem diria! Já lá vão cinco anos desde que entrámos neste novo milénio. Parece que ainda foi ontem que andava tudo maluquinho por causa do suposto vírus que ia destruir tudo à passagem do século XX para o XXI. Havia mesmo quem augurasse o fim do mundo, o apocalipse. Mas afinal tudo se gorou. Nem vírus, nem apocalipse, nada. O mundo manteve-se, e mantém-se até agora, com a diferença de que está mais velho cinco anos. A somar aos que já tinha, pode dizer-se que apresenta uma considerável idade, mas, mais do que isso, uma relativa boa forma, atendendo às circunstâncias. Não fossem as traquinices do bicho homem e estaria seguramente muito melhor. Disso não tenho dúvidas. Mas ainda assim, penso que é um planeta que se recomenda. Basta dar umas voltas pelo nosso Portugal, e não só, para encontrar sítios e locais capazes de surpreender quem ainda ache que este velho planeta azul já deu o que tinha a dar. São muitas as belezas naturais que podemos encontrar um pouco por cada um dos quatro cantos deste nosso mundo redondo. Basta ter vontade, algum fundo de maneio e querer conhecer. Para quem esteja na intenção de o fazer, recomendo, no entanto, que comece pelo nosso pequeno, mas cumpridor no que à beleza diz respeito, país. Porque goza de uma localização geográfica privilegiada - que já lhe valeu o epíteto de paraíso à beira-mar plantado - este nosso rectângulo lusitano é sobretudo rico em praias fantásticas onde pontificam paisagens deslumbrantes. Não quer com isto dizer que não possua paisagens igualmente deslumbrantes de interior, montanhas e serras a perder de vista, rios e afluentes em barda e todo um sem número de preciosidades a necessitarem de urgente descoberta. E isto é apenas esta nossa parcela de terra a que chamamos de pátria. Pois para lá das suas fronteiras bem definidas, fica todo um outro conjunto de países prontos a surpreender quem queira. É o que tem de bom viajar. Conhecem-se outras culturas, outras gentes, outras formas de estar, outros destinos igualmente imperdíveis e, acima de tudo, vive-se e respira-se este que é o nosso lar, o nosso planeta de sempre, que nos tem acolhido a nós, já acolheu os nossos antepassados e irá, seguramente, acolher os nossos descendentes. E sempre com novas surpresas com que nos presentear. É bonito o nosso planeta. Então visto do espaço é, com grande dose de certeza absoluta, a mais formidável das visões que é possível a alguém ter. Visto da pequena janela desta minha nave, o planeta Terra é maioritariamente azul, resultado da esmagadora percentagem de mar face à terra firme. E cá de cima, perante este cenário idílico, ninguém diz o que se passa lá em baixo. É tudo tão calmo, tão pacífico, que chega a parecer incrível como é que alguém se dá ao trabalho de andar à pancada, de andar a guerrear, a destruir algo que é tão incrivelmente maravilhoso. Toda a gente deveria partilhar desta minha visão privilegiada, mais que não fosse para dar valor àquilo que temos e reconhecer a grandeza do que possuímos face à nossa ridícula pequenez. Nem uma poeira somos no contexto do universo, neste extenso cosmos de que nem uma ínfima parte conhecemos e, ainda assim, o pó que levantamos. Quando é que a humanidade se reduz à sua real e natural insignificância e deixa, de uma vez por todas, de pensar apenas em estragar aquilo que lhe foi proporcionado? Talvez um dia. Quando todos virem a Terra deste mesmo ponto onde eu agora a vejo, a muitos quilómetros de distância. Talvez assim lhe ganhem o respeito que, quando apenas pisada, ela parece não merecer.